quarta-feira, 16 de julho de 2014

Crítica: O Melhor Lance


Em Autopsicografia, Fernando Pessoa escreveu: O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente. (...) E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm. (...) E assim nas calhas de roda/ Gira, a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se chama coração.

Em um dado momento de O Melhor Lance (La Migliore Offerta, Itália, 2013), escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore, um personagem diz: “Há sempre algo de autêntico escondido nas falsificações.” Acho que Pessoa gostaria dessa e de outras frases de impacto deste drama que envereda pelos meandros do mundo das artes (autênticas ou falsas) que movimenta milhões de euros.


A trama, com pincelada ocre de suspense e traço de romance em tom pastel-envelhecido, desenha a parábola de um famoso antiquário e leiloeiro, Virgil Oldman (Geoffrey Rush), que, ao aceitar avaliar um lote de objetos antigos, se vê diante de uma situação insólita envolvendo a herdeira Claire Ibbetson (Sylvia Hoeks) e uma engrenagem que, segundo o artífice Robert (Jim Sturgess), pode ser parte de um raro autômato construído pelo célebre inventor Jacques de Vaucanson (1709-1782). Em seu lucrativo ofício Oldman conta com a prestimosa colaboração do amigo Billy Whistler (Donald Sutherland) no favorecimento de alguns lances, mas não tem certeza se pode confiar a ele suas descobertas recentes. 

Tornatore trata com paixão a paixão que cega, que desestabiliza seus protagonistas na quentura do amor; na frieza da compra e felicidade da exposição de um quadro; no prazer da (re)criação de uma obra de arte. Seus personagens são palpáveis, são possíveis de figurar em qualquer catálogo, em qualquer mídia. Todavia, há que se ficar atento, pois, como se ouve nos bastidores da galeria, "As emoções são como obras de arte. Elas podem ser forjadas." Também porque, um lance de última hora pode não passar de um grande blefe no mercado das artes ou do amor.


O Melhor Lance tem roteiro instigante até mais ou menos o meio do filme. Depois, esticado além da conta (131 min!), parece se perder no próprio labirinto que criou. Um espectador mais atento talvez se frustre com o excesso (?) de pistas que tornam a narrativa e seu desfecho previsíveis. Posso estar enganado, mas a impressão é a de que essas pistas são intencionais (jogo de cena) e não um “ôps!” do diretor, já que também podem (?) passar batidas (o que duvido!) e as viravoltas realmente soarem espetaculares no clima (thriller-romântico) previsto para o grande público. Porém, se elas são intencionais, por que o suspense? Por que o (melo)drama? Por que a farsa? Essa resposta cada um vai ter que encontrar por conta própria. A minha seria considerada spoiler

Considerando que a narrativa é irregular, mas envolvente; que o ótimo elenco internacional dá conta do recado; que a excelência da produção (fotografia, direção de arte) proporciona uma fascinante viagem pelo universo de rostos femininos em belíssimas pinturas; que a cena final do epílogo é maravilhosa em sua engenhosidade e metáfora ou subtexto; que o script me fez lembrar Fernando Pessoa, na solidão requintada do frio Virgil Oldman e suas idiossincrasias..., acho que o espectador apaixonado por obras de arte, leilões, autômatos, se arriscar um lance, pode gostar da obra.

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