Em Autopsicografia,
Fernando Pessoa escreveu: O poeta é um
fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que
deveras sente. (...) E os
que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas
só a que eles não têm. (...) E
assim nas calhas de roda/ Gira, a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que
se chama coração.
Em um dado momento de O Melhor Lance (La Migliore Offerta,
Itália, 2013), escrito e dirigido por Giuseppe
Tornatore, um personagem diz: “Há
sempre algo de autêntico escondido nas falsificações.” Acho que Pessoa
gostaria dessa e de outras frases de impacto deste drama que envereda pelos
meandros do mundo das artes (autênticas ou falsas) que movimenta milhões de
euros.
A trama, com pincelada ocre de suspense e traço de
romance em tom pastel-envelhecido, desenha a parábola de um famoso antiquário e
leiloeiro, Virgil Oldman (Geoffrey Rush), que, ao aceitar avaliar
um lote de objetos antigos, se vê diante de uma situação insólita envolvendo a
herdeira Claire Ibbetson (Sylvia Hoeks) e uma engrenagem que,
segundo o artífice Robert (Jim Sturgess), pode ser parte de um raro
autômato construído pelo célebre inventor Jacques de Vaucanson (1709-1782). Em
seu lucrativo ofício Oldman conta com
a prestimosa colaboração do amigo Billy
Whistler (Donald Sutherland) no
favorecimento de alguns lances, mas não tem certeza se pode confiar a ele suas
descobertas recentes.
Tornatore trata com paixão a paixão que cega,
que desestabiliza seus protagonistas na quentura do amor; na frieza da compra e
felicidade da exposição de um quadro; no prazer da (re)criação de uma obra de
arte. Seus personagens são palpáveis, são possíveis de figurar em qualquer
catálogo, em qualquer mídia. Todavia, há que se ficar atento, pois, como se
ouve nos bastidores da galeria, "As
emoções são como obras de arte. Elas podem ser forjadas." Também
porque, um lance de última hora pode não passar de um grande blefe no mercado
das artes ou do amor.
O
Melhor Lance tem roteiro instigante até mais ou menos o meio
do filme. Depois, esticado além da conta (131 min!), parece se perder no próprio
labirinto que criou. Um espectador mais atento talvez se frustre com o excesso
(?) de pistas que tornam a narrativa e seu desfecho previsíveis. Posso estar
enganado, mas a impressão é a de que essas pistas são intencionais (jogo de
cena) e não um “ôps!” do diretor, já que também podem (?) passar batidas (o que
duvido!) e as viravoltas realmente soarem espetaculares no clima (thriller-romântico)
previsto para o grande público. Porém, se elas são intencionais, por que o
suspense? Por que o (melo)drama? Por que a farsa? Essa resposta cada um vai ter
que encontrar por conta própria. A minha seria considerada spoiler.
Considerando que a narrativa é irregular, mas
envolvente; que o ótimo elenco internacional dá conta do recado; que a
excelência da produção (fotografia, direção de arte) proporciona uma fascinante
viagem pelo universo de rostos femininos em belíssimas pinturas; que a cena
final do epílogo é maravilhosa em sua engenhosidade e metáfora ou subtexto; que
o script me fez lembrar Fernando Pessoa, na solidão requintada do frio Virgil Oldman e suas idiossincrasias...,
acho que o espectador apaixonado por obras de arte, leilões, autômatos, se
arriscar um lance, pode gostar da obra.
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