sexta-feira, 4 de julho de 2014

Crítica: O Espelho


Não sou muito fã de filmes de terror, mas sempre acabo vendo algum. Nos últimos anos, o único que realmente me deu calafrios foi o primeiro Atividade Paranormal (2009).  Outras produções que arrisquei me pareceram apenas cumprir cota, já que susto mesmo só com o altíssimo volume da trilha barulhosa. E olha, lá!

Nesse tipo de produção, a variedade de objetos que serve de “portão”, liberando geral o ir e vir de espíritos malignos em uma casa, geralmente isolada, parece não ter fim na imaginação dos autores: televisão, brinquedo, instrumento musical, relógio, corrente, telefone, pintura, livro, guarda-roupa, espelho... Mesmo assim, um ou outro utensílio doméstico sempre acaba se repetindo em uma história que parece (só parece) outra.

O Espelho (Oculus, EUA, 2013), terror dirigido por Mike Flanagan, é considerado uma versão estendida do seu premiado curta Oculus: Chapter 3 - The Man with the Plan (2006). O roteiro, desenvolvido em parceria com Jeff Howard, busca originalidade em um gênero que não consegue se renovar mesmo se apropriando do gore asiático. E, verdade não seja escondida embaixo do tapete, ele quase chega lá. O quase é por conta da expectativa e do horror (mais) psicológico que não chega a magnetizar, mas (alívio!) ao menos acaba preservando nossos tímpanos das ensurdecedoras “trilhas”.


Na trama, a história de uma família dilacerada, no ponto de vista de dois irmãos, Tim (Brenton Thwaites) e Kaylie (Karen Gillan) que, adultos, retornam à velha casa em que viveram, por poucas semanas, para provar que o responsável pela violenta morte dos seus pais, Alan (Rory Cochrane) e Marie (Katee Sackhoff), há dez anos, é algo maligno que habita um espelho secular e não o então o garoto Tim (Garrett Ryan). O jovem foi internado em um hospital psiquiátrico e a adolescente Kaylie (Annalise Basso) foi adotada. O que Tim levou uma década de análise para esquecer, a garota quer fazê-lo reviver, só para comprovar a sua tese de que o antigo espelho, com detalhes sinistros na parte superior da moldura, é um assassino em potencial que mata sem refletir. Ou seria mata quem nele refletir?

Pela sinopse, não deixa de ser uma história de vingança (e justiça?), com toques de masoquismo. Uma guerra (sem nexo) entre seres animados e seres (?) reanimados que nem mesmo a Alice (aquela, de Lewis Carroll, através do espelho) sabe de onde vieram e porque tanta insanidade: Oh, espelho, espelho meu, diga o quê, no meu reflexo, te aborreceu?! Tem muita gente que acredita que os olhos são o espelho da alma e através deles é possível conhecer uma pessoa. Ah, não confundir com iridologia.

Ainda que viajando no colírio, em O Espelho - Esboço de uma nova teoria da alma humana, conto fantástico de Machado de Assis, publicado em Papéis Avulsos (1882), o mestre fala da dualidade da alma (interna e externa): “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... (...) as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma.” (...) Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra.” Ôps! Se quiser conhecer o final dessa filosófica história, leia, na íntegra, o fascinante conto lá no Falas ao Acaso, clicando aqui em O Espelho.


Bem, desembaçada a vista e de volta ao O Espelho hollywoodiano, para quem gosta de perseguir metáforas cinematográficas, não vai ser difícil encontrar no “subtexto”, entre um diálogo e outro, insinuações de que o desejo de ostentação de Alan, na compra e exposição do ostensivo espelho, em razão do seu sucesso como programador de softwares, pode ser a causa da maldição do lar doce lar. Ou será premiação, já que no “interior” dele parece haver um “bom” espaço para os “maus” súcubos e íncubos? Eu, hein! E o que a mulher e os filhos têm a ver com isso? Seria o Espelho um Deus Reflexivo das Vaidades que pune os incrédulos e ambiciosos, fazendo aflorar o reflexo oculto de cada um e seus desejos inconfessáveis?  Cadê as minhas lentes de contato? Ah, esqueci, eu não uso lentes de contato.

O Espelho é um filme de horror, digamos, atípico. Está mais próximo ao horror sugestivo que explicito. Ou seja, em vez do susto a todo momento de sonolência da plateia, opta pelo suspense. Ele prepara o espectador cena a cena para um desfecho que pode ser tão assustador quanto previsível. Já que a intenção e a intensidade do medo podem ser decifradas seguindo a musiquinha tradicional e muito mais light que as do gênero. O AI! e o AH! ficam por conta do envolvimento emocional de cada espectador com a credulidade do drama de horror, econômico também na sanguinolência.


Para mim, que vejo quase nada de terror, O Espelho me pareceu arrastado e, no final, confuso e previsível. No entanto, sou obrigado a reconhecer que se destaca onde muitos falham: direção e edição de cena e fotografia. A edição é primorosa ao colocar (!) espetacularmente duas histórias de épocas distintas no mesmo plano e ao mesmo tempo: imagem e reflexo dialogando com o passado e com o presente. É fascinante essa inter-relação espaço-tempo. Há uma breve sequência (talvez a melhor!), inclusive, que remete a obra de M. C. Escher. O trunfo da fotografia de Michael Fimognari é a exploração de ângulos desconcertante, principalmente no primeiro ato. O que, de certa forma, favorece o ótimo elenco (gostei de Annalise Basso) e compensa a caracterização medíocre dos “fantasmas”. Pena que o roteiro tenha tropeçado e ficado preso no entretempo do quase!

Em tempo: Oculus pode ser “traduzido” do latim como olhos, óculos, abertura circular.

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