Cada testemunha ocular (ou auricular) da
história tem a sua lembrança do Golpe Militar de 1964. A minha memória deste
ano fatídico é curta. Mínima, na verdade. Tinha eu 12 anos e morava em Oswaldo
Cruz, interior de São Paulo. Com certeza ele deve ter sido mencionado em sala
de aula..., mas não me recordo de alguma agitação na cidade. Estava descobrindo
a literatura que, assim como os quadrinhos, a música, o cinema, a rua, ocupava
parte do meu tempo. Do período recordo (mesmo) é da comoção causada pela morte
de John F. Kennedy, quando todos os alunos foram convocados a assistir, no
Salão Nobre do Instituto de Educação, a um documentário sobre a tragédia presidencial
americana, e da animada e mal explicada Marcha
do Ouro Para o Bem do Brasil. Não tenho certeza se meus pais também foram
enganados e deram as suas alianças. A razão da exibição do documentário sobre a
morte de Kennedy me parece obscura. Pode tanto ter a ver com o leite em pó que
vinha do “bonzinho” EUA e era servido no recreio, quanto (agora vendo o
documentário) com a ideia de “base democrática” do Golpe Militar.
Ainda em fins nos anos 1960, ao responder a um
concurso promovido por um jornal de São Paulo (Folha?), sobre a fundação de Brasília,
ganhei um terreno (Anápolis ou Luziânia?), que jamais tomei posse, por duas
razões: econômica e política. Econômica: minha família não tinha como bancar a
viagem e gastos de registro. Política: minha mãe, em sua simplicidade, ter comentado
que Cidade Satélite era coisa de comunista. De onde ela tirou essa ideia eu não
sei. Talvez tenha ouvido no rádio ou lido em algum jornal. Televisão não tinha
por aquelas bandas. Depois descobri que as Cidades Satélites eram as tais
Cidades Dormitórios do DF. Tinha eu 14 ou 15 anos, era balconista em uma
farmácia e confesso que política, até então, não era o meu forte adolescente,
naquele interior de lindas garotas nisseis. A consciência do Brasil em ebulição
me tonteou no viés de 1969, na mudança para a capital: cinema (novo, realismo
italiano, nouvelle vague..., que não chegavam ao interior), teatro (arena,
bolso), Pasquim, Festivais, Hippies etc. Nessa revira(re)volta, ao conhecer gentes
outras, buscando fazer a diferença, me descobri também do contrário. Fim da
infância e da década: o realismo brasileiro me pegou pelo colarinho.
Sempre que o assunto Golpe Militar vem à baila, muita
gente deve se perguntar onde estava nesse dia em que o punho de chumbo
nocauteou a democracia, socando com desdém o cidadão comum. Quando a força
bruta trapaceou a liberdade, que verbo conjugou quem se viu caminhando pelas
sombras e ou desaparecendo à luz do dia e ou sobrevivendo nas entrelinhas dos
jornais? Com certeza há muita história de cidadão anônimo ou figurinha de poste
a ser desvelada, contada, partilhada. Ao passar a limpo o obscuro rascunho do
golpe que enganou até os seus gestores, O
Dia Que Durou 21 Anos, de Camilo
Tavares, procura traçar o preciso caminho da bala que até então parecia
perdida entre ditos e não ditos daquele maldito 1 de Abril: do ai ao AI!
O Dia
Que Durou 21 Anos é um filme de miudezas, ocas o suficiente para
conter “invioláveis” segredos de bastidores. Se, parodiando Drummond, de tudo
fica um rasto, em pouco mais de três anos, o diretor, com a colaboração de seu
pai, Flávio Tavares (um dos presos
políticos exilados no México) e apoio do historiador Carlos Fico e da pesquisadora Denise
Assis, descobriu nos EUA e no Brasil os vestígios daquele nefasto 1964. Nas
letras minúsculas, conversas rápidas, imagens esquecidas, senhas irônicas (Brother Sam), Camilo Tavares encontrou as
peças originais para completar um quebra-cabeça que se queria esquecido por
“falha de fabricação” norte-americana e “atabalhoado” uso pelos “sobrinhos” sul-americanos.
Cada um com o seu Brucutu!
Dirigido com elegância e impressionante
serenidade, o documentário passa ao largo do revanchismo e do revisionismo de
ocasião. Essa serenidade, que não deve ser confundida com passividade, é fundamental
para melhor percepção dos atos maquinados antes, durante e depois do ato (extirpar Jango) consumado. A narrativa
que aos poucos desvela a verdadeira face do maquiavélico fantasma capitalista (ti)Tio
Sam, eterno xerife na mesmice de uma ópera encenada para um público cada vez
mais trágico, por vezes nos remete ao também incômodo A Doutrina do Choque (2009) de Alfonso Cuarón e Naomi Klein. O
formato tradicional é imprescindível no seu propósito de elucidar fatos e
preencher lagunas, sem perder o foco CQD (expressão ginasial nos 1960: Como
Queria Demonstrar) essa intrincada e inacreditável matemática da conspiração
que somou a política de negócios americanos com a dos negociantes da politica
brasileira. Ou seja, o que era murmúrio no sequestro do embaixador
estadunidense Charles Elbrick, ganha agora altiva veracidade.
O Dia
Que Durou 21 Anos é um documentário envolvente e, com a riqueza de
imagens e depoimentos (articuladores, carrascos e vítimas), uma obra de
interesse nacional, ou melhor, educacional. Ele desarma o espectador mais afoito
e o faz juiz, na cartada final que quebra a banca, nomes e siglas, em busca de
rima (se) possível para réu e redenção. Oriundo da televisão (exibido na TV
Brasil em abril de 2011), desperta mágoas e provoca lágrimas em um público que,
conivente ou não, 49 anos depois ainda “preserva” uma poderosa matilha de velhas
e novas raposas em cargos públicos. Muito dele já foi dito e detalhado em
outras críticas. Prefiro que o espectador saiba o mínimo e se deixe surpreender
(e arrepiar!) com o que verá e ouvirá sobre esse dia que ainda tem minutos a
serem examinados. Sabendo o mínimo, o impacto é muito maior e capaz (até) de mudar
conceitos sobre política interna e externa.
Quem sabe em 2014 o Golpe Militar possa ser tema
de discussão livre em salas de aula de todo o país, formando cidadãos e
eleitores mais conscientes!
Nenhum comentário:
Postar um comentário