De tempos
em tempos, romancistas estadunidenses trazem a lume um velho tema: segregação
racial na região sudeste dos EUA, nos anos 1950/1960. Os livros (geralmente
ficção) ganham popularidade e (óbvio!) são adaptados para o cinema. Em 2008, The Secret Life of Bees (A Vida Secreta
das Abelhas) da escritora Sue Monk Kidd, publicado em 2002, chegou às telas através
da diretora Gina Prince-Bythewood. Em 2011, foi a vez do diretor Tate Taylor
adaptar o romance The Help (Histórias
Cruzadas), de Kathryn Stockett, lançado em 2009. Os dois livros (de autoras
brancas) têm o seu foco em personagens femininos e narram as experiências de
mulheres brancas (e futuras escritoras) na convivência com mulheres negras oprimidas
pela sociedade branca. Os homens (brancos e ou negros), geralmente coadjuvantes,
são protagonistas (apenas) nos pontuais atos de violência. Os palcos são a
Carolina do Sul e o Mississippi.
Histórias Cruzadas (The
Help, EUA, 2011), de Tate Taylor,
situa-se nos buliçosos anos de 1960, em Jackson, uma pequena cidade onde as
mulheres negras, sem opção, obrigatoriamente trabalham como serviçais de
mulheres brancas “preocupadas” com a fome na África e o jogo de bridge. Elas
ali são pouco mais que nada, mas mão-de-obra barata e indispensável para as
dondocas. Algumas também acumulam a função de babá e, quando possível, ensinam
valores humanos à criança: "Você é
gentil! Você é inteligente! Você é importante!". Todavia, nem sempre o
que se apreende na infância serve como moral na parábola futura.
O filme tem
um bom argumento, mas derrapa no didatismo do roteiro. Skeeter Phelan (Emma Stone)
é uma jovem branca (com pretensões literárias) recém-contratada pelo The Jackson Journal, para escrever sobre
prendas domésticas. O problema é que ela entende nada do assunto e ao pedir ajuda
a Aibileen Clark (Viola Davis, magistral), uma empregada
doméstica negra, acaba encontrando, entre uma conversa e outra, um assunto palpitante
que pode render um bom (e polêmico) livro. Com um título no papel: The Help (A Ajuda) e uma ideia na
cabeça, ela parte para o impensável naquela cidade com resquícios escravocrata:
entrevistar as serviçais negras e conhecer a origem delas, os sonhos, a
família, o relacionamento com as patroas brancas. Apesar de relutante, Aibileen concorda em lhe dar um
depoimento, mas não é o suficiente, e Skeeter
tenta convencer a afável e atrevida Minny
Jackson (Octavia Spencer), que
sabe de coisas que até Deus duvida, a participar do audacioso projeto.
À
primeira vista parece oportunismo uma jornalista branca se “apropriar” de
histórias de mulheres negras e publicar o seu primeiro livro. No entanto, ao
ver a capa da publicação todos os conceitos mudam. The Help (A Ajuda) é um título amplo e também pode significar troca
de favores. Mulher branca realiza o seu sonho e mulheres negras (mesmo que
anonimamente) ganham voz impossível de calar. A narrativa, às vezes nonsense
(na instalação de vasos sanitários) às vezes amarga (na criação do filho alheio)
ou mais irônica do que engraçada (na torta de Minny), também varia entre a
beleza contagiante e a pieguice. Alguns exageros na composição vilanesca e ou
heroica das personagens incomodam. É difícil imaginar um lugar pior que a provinciana
Jackson, onde, com raríssimas exceções, branco é mau, branco manda e preto é
bom, preto obedece. Pelo menos é o que nos faz crer este dramalhão capaz de
afogar um espectador mais sensível em um mar de lágrimas, ou de refrigerante ou
de pipoca, conforme a sessão mea-culpa,
não!
Na
excessiva boa intenção de traduzir a inquietação de mulheres negras, Histórias Cruzadas ganha veracidade na
interpretação de três atrizes: Viola Davis que, numa contenção de gestos
impressionante, expressa toda angústia e dor de Aibileen, através do olhar e do tom de voz; Octavia Spencer, na
criação expansiva (e quase farsesca) de Minny;
e a carismática Jessica Chastain,
compondo na medida exata a desajeitada Celia
Foote, a única branquela boa gente do lugar. Quanto a Emma Stone, a sua Skeeter Phelan não rende, não se decide
entre a esnobada garota virginal e a independente universitária. Já a caricata Hilly Holbrook, de Bryce Dallas, é uma megera típica de Contos de Fadas.
Histórias
Cruzadas dividiu a crítica americana e desagradou a Association of Black Women Historians,
cuja diretora, Ida E. Jones, publicou uma carta aberta (leia aqui),
dizendo que o livro e o filme distorcem, ignoram, e banalizam as experiências
dos negros trabalhadores domésticos, não falam do assédio sexual sofrido pelas
mulheres negras e mostram os homens negros como cruéis ou ausentes. Bem, os homens
(pretos ou brancos), apesar da sociedade machofalocrata, raramente aparecem (não
são o foco de interesse). Quanto aos atos de crueldade, o que se vê são os
ferimentos, mas não o ato de violência dos negros, que é explícita apenas na
ação truculenta dos policiais brancos.
Pode parecer irrelevante, mas quando se fala
de cultura, não tem povo que não defenda a sua. Assim, só para constar, Kathryn
Stockett é uma escritora branca, nasceu em 1969, em Jackson (Mississippi), e The Help seria uma homenagem a
Demetrie, uma empregada negra que foi essencial na sua infância. Tate Taylor,
roteirista e diretor de The Help, é
branco e também nasceu em Jackson. Com ou sem “autoridade” para falar sobre
segregação racial (na terra onde nasceram), a verdade é que (independente do resultado)
realizaram obras campeãs.
Realmente,
muitos pontos espinhosos do período negro da história norte-americana, além do
assédio sexual, não são tocados, talvez pelo fato de ser uma obra de ficção sem
intenção de catarse racial. Se bem que (de alguma forma) os espinhos acabam
subtendidos no cruzamento das narrativas brancas e negras. Porém, a idealização
histórica do melodrama pode confundir o espectador, principalmente quando os
fatos reais são meras citações (de rodapé), como a famosa Marcha sobre
Washington por Trabalho e Liberdade, organizada por Martin Luther King Jr.
(1929 - 1968), em 1963, o assassinato do ativista negro Medgar Evers (1925 -
1963) e do presidente como John F. Kennedy (1917 - 1963), o Direito ao Voto, as
abomináveis Leis de Jim Crow.
A “difícil”
convivência entre branco e negro não é novidade no cinema americano. A
improvável conivência entre patroa e empregada foi destaque em The Long Walk Home (Uma História
Americana, 1990), com Sissy Spacek (que também está em Histórias Cruzadas) e Woopi Goldberg. Porém, na variação sobre o
mesmo tema, e mantendo a intensidade, Histórias
Cruzadas, mesmo que através de uma patroa (escritora) branca, traz uma voz
nova, ou ao menos diferente, ao dramático período. Fictícias ou possíveis, as
histórias “colhidas” são fortes, doloridas. Se não pegam o espectador pela
razão, o pegam pelo coração. Tate fez a sua lição de casa, estudou direitinho a
cartilha de clichês, por isso é difícil ficar imune a alguns dos inúmeros
constrangimentos sofrido pelas serviçais. Hollywood continua imbatível na arte
de manipular emoções!
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