terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Crítica: Histórias Cruzadas



De tempos em tempos, romancistas estadunidenses trazem a lume um velho tema: segregação racial na região sudeste dos EUA, nos anos 1950/1960. Os livros (geralmente ficção) ganham popularidade e (óbvio!) são adaptados para o cinema. Em 2008, The Secret Life of Bees (A Vida Secreta das Abelhas) da escritora Sue Monk Kidd, publicado em 2002, chegou às telas através da diretora Gina Prince-Bythewood. Em 2011, foi a vez do diretor Tate Taylor adaptar o romance The Help (Histórias Cruzadas), de Kathryn Stockett, lançado em 2009. Os dois livros (de autoras brancas) têm o seu foco em personagens femininos e narram as experiências de mulheres brancas (e futuras escritoras) na convivência com mulheres negras oprimidas pela sociedade branca. Os homens (brancos e ou negros), geralmente coadjuvantes, são protagonistas (apenas) nos pontuais atos de violência. Os palcos são a Carolina do Sul e o Mississippi.

Histórias Cruzadas (The Help, EUA, 2011), de Tate Taylor, situa-se nos buliçosos anos de 1960, em Jackson, uma pequena cidade onde as mulheres negras, sem opção, obrigatoriamente trabalham como serviçais de mulheres brancas “preocupadas” com a fome na África e o jogo de bridge. Elas ali são pouco mais que nada, mas mão-de-obra barata e indispensável para as dondocas. Algumas também acumulam a função de babá e, quando possível, ensinam valores humanos à criança: "Você é gentil! Você é inteligente! Você é importante!". Todavia, nem sempre o que se apreende na infância serve como moral na parábola futura.


O filme tem um bom argumento, mas derrapa no didatismo do roteiro. Skeeter Phelan (Emma Stone) é uma jovem branca (com pretensões literárias) recém-contratada pelo The Jackson Journal, para escrever sobre prendas domésticas. O problema é que ela entende nada do assunto e ao pedir ajuda a Aibileen Clark (Viola Davis, magistral), uma empregada doméstica negra, acaba encontrando, entre uma conversa e outra, um assunto palpitante que pode render um bom (e polêmico) livro. Com um título no papel: The Help (A Ajuda) e uma ideia na cabeça, ela parte para o impensável naquela cidade com resquícios escravocrata: entrevistar as serviçais negras e conhecer a origem delas, os sonhos, a família, o relacionamento com as patroas brancas. Apesar de relutante, Aibileen concorda em lhe dar um depoimento, mas não é o suficiente, e Skeeter tenta convencer a afável e atrevida Minny Jackson (Octavia Spencer), que sabe de coisas que até Deus duvida, a participar do audacioso projeto.

À primeira vista parece oportunismo uma jornalista branca se “apropriar” de histórias de mulheres negras e publicar o seu primeiro livro. No entanto, ao ver a capa da publicação todos os conceitos mudam. The Help (A Ajuda) é um título amplo e também pode significar troca de favores. Mulher branca realiza o seu sonho e mulheres negras (mesmo que anonimamente) ganham voz impossível de calar. A narrativa, às vezes nonsense (na instalação de vasos sanitários) às vezes amarga (na criação do filho alheio) ou mais irônica do que engraçada (na torta de Minny), também varia entre a beleza contagiante e a pieguice. Alguns exageros na composição vilanesca e ou heroica das personagens incomodam. É difícil imaginar um lugar pior que a provinciana Jackson, onde, com raríssimas exceções, branco é mau, branco manda e preto é bom, preto obedece. Pelo menos é o que nos faz crer este dramalhão capaz de afogar um espectador mais sensível em um mar de lágrimas, ou de refrigerante ou de pipoca, conforme a sessão mea-culpa, não!


Na excessiva boa intenção de traduzir a inquietação de mulheres negras, Histórias Cruzadas ganha veracidade na interpretação de três atrizes: Viola Davis que, numa contenção de gestos impressionante, expressa toda angústia e dor de Aibileen, através do olhar e do tom de voz; Octavia Spencer, na criação expansiva (e quase farsesca) de Minny; e a carismática Jessica Chastain, compondo na medida exata a desajeitada Celia Foote, a única branquela boa gente do lugar. Quanto a Emma Stone, a sua Skeeter Phelan não rende, não se decide entre a esnobada garota virginal e a independente universitária. Já a caricata Hilly Holbrook, de Bryce Dallas, é uma megera típica de Contos de Fadas.

Histórias Cruzadas dividiu a crítica americana e desagradou a Association of Black Women Historians, cuja diretora, Ida E. Jones, publicou uma carta aberta (leia aqui), dizendo que o livro e o filme distorcem, ignoram, e banalizam as experiências dos negros trabalhadores domésticos, não falam do assédio sexual sofrido pelas mulheres negras e mostram os homens negros como cruéis ou ausentes. Bem, os homens (pretos ou brancos), apesar da sociedade machofalocrata, raramente aparecem (não são o foco de interesse). Quanto aos atos de crueldade, o que se vê são os ferimentos, mas não o ato de violência dos negros, que é explícita apenas na ação truculenta dos policiais brancos.

Pode parecer irrelevante, mas quando se fala de cultura, não tem povo que não defenda a sua. Assim, só para constar, Kathryn Stockett é uma escritora branca, nasceu em 1969, em Jackson (Mississippi), e The Help seria uma homenagem a Demetrie, uma empregada negra que foi essencial na sua infância. Tate Taylor, roteirista e diretor de The Help, é branco e também nasceu em Jackson. Com ou sem “autoridade” para falar sobre segregação racial (na terra onde nasceram), a verdade é que (independente do resultado) realizaram obras campeãs.


Realmente, muitos pontos espinhosos do período negro da história norte-americana, além do assédio sexual, não são tocados, talvez pelo fato de ser uma obra de ficção sem intenção de catarse racial. Se bem que (de alguma forma) os espinhos acabam subtendidos no cruzamento das narrativas brancas e negras. Porém, a idealização histórica do melodrama pode confundir o espectador, principalmente quando os fatos reais são meras citações (de rodapé), como a famosa Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, organizada por Martin Luther King Jr. (1929 - 1968), em 1963, o assassinato do ativista negro Medgar Evers (1925 - 1963) e do presidente como John F. Kennedy (1917 - 1963), o Direito ao Voto, as abomináveis Leis de Jim Crow.

A “difícil” convivência entre branco e negro não é novidade no cinema americano. A improvável conivência entre patroa e empregada foi destaque em The Long Walk Home (Uma História Americana, 1990), com Sissy Spacek (que também está em Histórias Cruzadas) e Woopi Goldberg. Porém, na variação sobre o mesmo tema, e mantendo a intensidade, Histórias Cruzadas, mesmo que através de uma patroa (escritora) branca, traz uma voz nova, ou ao menos diferente, ao dramático período. Fictícias ou possíveis, as histórias “colhidas” são fortes, doloridas. Se não pegam o espectador pela razão, o pegam pelo coração. Tate fez a sua lição de casa, estudou direitinho a cartilha de clichês, por isso é difícil ficar imune a alguns dos inúmeros constrangimentos sofrido pelas serviçais. Hollywood continua imbatível na arte de manipular emoções!

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