quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Crítica: Beleza Tóxica



BELEZA TÓXICA

Neste 2020, o perturbador drama jurídico O Preço da Verdade (Dark Waters, 2019), brilhantemente dirigido pelo norte-americano Todd Haynes, deixou cinéfilos e público ocasional horrorizados com a narrativa que desvela o processo movido (por mais de uma década) pelo advogado corporativo Robert Bilott ( Mark Ruffalo), do escritório de advocacia Taft Stettinius & Hollister, de Cincinnati, Ohio - USA, contra a toda poderosa multinacional DuPont, responsabilizada por crime ambiental e de saúde pública e por ocultação de experiências inimagináveis no processo químico de fabricação de seus produtos (Teflon) consumidos em quase (?) todo o mundo.”

Agora, ainda na esteira do horror oculto em frascos práticos e elegantes, nos chega o tanto quanto apavorante documentário Beleza Tóxica (Toxic Beauty, 2019), da cineasta canadense Phyllis Ellis..., que esmiúça as fórmulas (ininteligíveis) dos produtos de beleza usados por imensa população (principalmente feminina) em quase todo o mundo, para desmaquilar o famoso Talco Infantil da Johnson & Johnson, que teria provocado câncer de ovário e de mama em mais de 15.000 mulheres. O filme está na mostra online grátis ECOfalante e em alguns serviços pagos de streaming.


Embora o foco maior em Beleza Tóxica incida na ação coletiva de mulheres canadenses (diagnosticadas com câncer de ovário e de mama relacionados ao uso de talco infantil) contra a influente fabricante (negacionista) Johnson & Johnson, a sua luminosidade é tão abrangente que a inequívoca série de entrevistas com cientistas, médicos(as), vítimas/pacientes, advogados, esclarece ainda o potencial destrutivo dos ingredientes (como amianto e mercúrio, por exemplo) por trás das letrinhas miúdas nas fórmulas de produtos de higiene e beleza, de uso cotidiano, como pasta de dente, desodorante, xampu, batom, sabonete, esmalte, creme hidratante, creme de barbear..., também de outras marcas famosas do bilionário mercado de cosmético.

Não é uma batalha fácil pela saúde da(o) cidadã(o), quando se tem como oponente nos tribunais a gigante (manipuladora) Johnson & Johnson, que (desde os anos 1960) conhece os riscos do produto que fabrica (já fez recall de Talco para Bebê, por causa do cancerígeno amianto) e saiu pela tangente (como se não fosse com ela), em 1982, ao ser confrontada com as pesquisas irrefutáveis do renomado epidemiologista Dr. Daniel Cramer, relacionando o Talco para Bebê, da J&J, ao câncer de ovário.


Beleza Tóxica não é um filme especulativo que, em defesa da saúde e bem-estar principalmente das mulheres..., (cobaias/passivas) da indústria de cosméticos e público-alvo da publicidade..., sai atirando para tudo quanto é lado. Seu equilibrado roteiro, que destaca que as maiores vítimas são as mulheres de pele negra, é repleto de documentação consistente e não busca o escândalo ou vingança, mas a justiça para quem confiou e agora tem seus dias abreviados pelo câncer, ou sofre com distúrbios hormonais, puberdade precoce, infertilidade masculina, diabetes, doença de pele. Enquanto a União Europeia já proibiu cerca de 1300 produtos químicos em maquiagem, os EUA (que não exigem nem mesmo rótulos de advertência de efeitos colaterais) rejeitaram apenas 11. Ora, se nos EUA, a FDA (Food and Drug Administration) fecha os olhos para essas “distrações” químicas, já que a indústria de cosméticos e cuidados pessoais se autorregula, a quem recorrer? Aqui no Brasil, então, é melhor nem tocar no assunto!

Em sua narrativa bastante acessível, entre as entrevistas, os depoimentos, os julgamentos e as sessões políticas, o(a) espectador(a) acompanha a saga de três participantes: a da estudante de medicina e pesquisadora Mymy Nguyen, que (após a recuperação de câncer de mama benigno) revê seu inacreditável ritual diário de cuidados pessoais (com cerca de 30 produtos de embelezamento), se sujeita a um teste de toxicidade e experimenta novos cosméticos, pois teme que o uso exagerado de maquiagem possa comprometer a sua fertilidade...; a da sexagenária Mel Lika, ex-mediadora da OTAN, cujo câncer de ovário (pelo uso contínuo do Talco de Bebê) frustrou as suas pretensões maternais...; e da incrível militante Deane Berg, uma médica assistente de Sioux Falls, que recusou uma compensação (e fim de processo judicial) de US$ 1,3 milhão, da Johnson & Johnson, para ter a chance de divulgar sua experiência pessoal. A sua vitória foi simbólica, pois a J&J, mesmo considerada culpada de fraude, negligência e conspiração, não teve que gastar um tostão em danos. A incansável Deane aproveita o seu tempo instruindo outras mulheres para as (constrangedoras) apresentações no tribunal. Nesse embate dos cosméticos, Ellis registra que a J&J e a FDA, entre outros fabricantes, não quiseram dar depoimento para o filme, bem como que a Johnson & Johnson enfrenta mais de 11.000 ações judiciais (que somam bilhões) só nos EUA e a Talc America da Imery's, sua fornecedora, entrou com pedido de concordata.


Enfim, considerando que (com sua corajosa denúncia) o documentário te deixa sem chão, ao saber o alto custo da tua vaidade e ou o alto custo dos teus cuidados pessoais básicos; que te emociona e te revolta com as histórias de impotência de tantas mulheres brancas e negras e asiáticas e orientais enganadas por homens inescrupulosos (na J&J somente um Johnson substitui outro Johnson); que em meio à dor de um câncer vindo de brinde (de mau gosto) numa embalagem inocente de refrescante Talco de Bebê, abreviando sonhos e anunciando uma morte nada glamourosa..., Beleza Tóxica chega ao público com a urgência de ser visto e debatido por mulheres de todas as raças e também por homens de todas as raças que, a cada dia mais, se sujeitam aos tratamentos estéticos... Seus pertinentes questionamentos (envolvendo bebês, crianças, jovens, adultos, velhos) vão muito mais além desta resenha. Descoberta dolorida após descoberta repugnante em cada sequência! Acredite, a tua relação com qualquer cosmético será diferente (e muito mais consciente!) após assistir a este corajoso documentário-denúncia.

É claro que não é nenhum crime querer (e conseguir) melhorar a aparência, mas será que é preciso ir tão longe quanto Mymy Nguyen? Por que é tão difícil aos intransigentes senhores do mercado da beleza admitirem suas falhas, seus erros e buscar corrigi-los? Com bem coloca Phyllis Ellis: “Se os homens tivessem câncer testicular ao usar talco, aposto que esses produtos teriam sido retirados da prateleira ou pelo menos recebido uma etiqueta de advertência em 1982”..., a se pensar!

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