quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Crítica: Cadê Você, Bernadette?



CADÊ VOCÊ, BERNADETTE?
por Joba Tridente

Entre os meus filmes favoritos se encontram alguns de Richard Linklater: Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004), Antes da Meia-Noite (2013), Escola de Rock (2003), O Homem Duplo (2005), Boyhood - Da Infância à Juventude (2014). Com seus diálogos emocionantes, que também podem ser tão desconcertantes quanto os do mestre Woody Allen, o diretor Linklater, um dos nomes mais interessantes do cinema indie norte-americano, faz de seus filmes um espetáculo raro, que por muito tempo ou mesmo anos, fica ecoando na memória, como a envolvente trilogia “Antes”, por exemplo. Um cineasta capaz de passar doze anos filmando uma história como a de Boyhood, realmente, deve ter muito a dizer com sua arte. O problema é que nem sempre a plateia está olhando para o mesmo horizonte que ele. Sua obra mais recente, Cadê Você, Bernadette?, já está nas salas de cinema. Será que o grande público irá mergulhar na onda da sua protagonista e confortavelmente sintonizá-la?


Cadê Você, Bernadette? (Where'd You Go, Bernadette, 2019) é baseado no best-seller homônimo de Maria Semple, lançado em 2012. O roteiro, assinado Holly Gent, Vincent Palmo Jr. e Linklater, acompanha a misantrópica arquiteta Bernadette Fox (Cate Blanchett) que, ao contrário de seu marido Elgie (Billy Crudup), desenvolvedor de tecnologia inteligente, está no auge de uma crise criativa e, sem se dar conta do seu estado depressivo, acaba perdendo o chão quando a filha Bee (Emma Nelson), faz uma proposta para os três passarem uns dias numa base na Antártica.

O sumiço de Bernadette é mostrado num breve prólogo, belissimamente fotografado por Shane F. Kelly, na Antártica. Há um recuo de algumas semanas e então começamos compreender o título da trama, que vai muito além deste início. Através de emails, narrativas da filha, vídeos e relacionamento com vizinhos, a vida de Bernadette vai se desvelando e, só aos poucos, começamos a compreender as idiossincrasias da personagem, que se mudou da Los Angeles para Seattle, onde o marido trabalha na Microsoft e ela, praticamente, se ocupa da amada filha adolescente Bee. A família, um tanto disfuncional, mora num casarão antigo (parecido com casas velhas e abandonadas de filme de terror) há muito esperando por uma restauração adiada, já que a proprietária, considerada um dos nomes mais importantes da arquitetura norte-americana, está com bloqueio criativo, provocado por um trauma (que só quem é artista profundamente dedicado à sua arte vai compreender a dimensão da dor) que será mostrado no avanço da narrativa.


Ao se emparedar em seu mundo, com abertura de sol apenas para a amada filha e com alguns raios para o amigável marido, Bernadette pede socorro. Mas ninguém, além dela, a ouve. A sua janela está fechada para a (odiada) humanidade ao seu redor..., o que a faz se “relacionar” com Manjula, uma assistente virtual indiana, sempre online, que “resolve” todos os seus problemas materiais. Conforme o enredo amarra as pontas soltas, compreendemos que o questionamento “cadê você?” vai muito além do “último” desaparecimento (na Antártica) da protagonista, que há muitos anos estava perdida dentro de si mesma à espera de um resgate.

Embora classificado como comédia, a mim Cadê Você, Bernadette? sugere um drama psicológico..., com espaço para se compreender uma emocionante jornada do herói tardia. O que não quer dizer que algum espectador não possa achar graça em algumas cenas absurdas.  Toda via retórica dos gêneros cinematográficos, no entanto, creio que os profissionais do divã vão se encantar com uma notável edição de duas sequências em que (sem dividir a tela) Bernadette encontra casualmente o arquiteto Paul Jellinek (Laurence Fishburne) e conversa sobre os velhos tempos (há uma fala curiosa de Jellinek sobre criatividade) e os percalços da profissão, ao mesmo tempo em que o seu marido Elgie se encontra com a psiquiatra Dr. Kurtz (Judy Greer) e fala sobre o comportamento da mulher. Esta fascinante alternância de diálogos é essencial para se compreender como a misantrópica Bernadette chegou àquele estado mental e para sinalizar uma possível saída desse transtorno.


Não sei dizer o quanto a adaptação de Cadê Você, Bernadette?  é fiel ao romance de Semple, pois desconheço a obra, mas o roteiro (com alguma obviedade) me pareceu enxuto, na medida certa para contar uma história que vai lapidando sem pressa a aspereza do assunto até chegar redondinha (e sem subestimar o espectador) ao satisfatório epilogo. A direção de Richard Linklater é precisa. O elenco é formidável e, claro, Cate Blanchett não decepciona. Como já disse, não há alívio cômico, mas (procurando bem) nada impede o espectador de encontrar sinais de humor e, ao menos, abrir um leve sorriso. Além da fotografia, destaco tanto a cenografia quanto a edição. Ah, e se a misantrópica Bernadette vai ser encontrada e ou se encontrou, você só vai saber assistindo!


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

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