Blade Runner 2049
por
Joba Tridente
Em Blade Runner
(1982), do britânico Ridley Scott, há um dos mais belos e emblemáticos
monólogos do cinema, dito pelo replicante/androide Roy Batty (Rutger Hauer): “-
Vi certas coisas que a sua gente não acreditaria. Naves de ataque ardendo ao
largo de Orion. Vi raios C cintilando na escuridão junto ao Portão de Tannhäuser.
Todos estes momentos vão se perder no
tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”. Em Blade Runner 2049, do canadense Denis
Villeneuve, não há nenhum monólogo e ou cena equivalente. Porém, há uma magnífica
narrativa que faz jus ao clássico/cult ao seguir em frente com a história
carismática que encanta os cinéfilos há 35 anos.
Com base em personagens criados pelo escritor
norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), para o romance de ficção científica
Do Androids Dream of Electric Sheep?
(Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?),
lançado em 1966, em vez de um mundo novo, com gosto molhado de distopia zero e
escravos androides de última geração, os
roteiristas Hampton Fancher (Blade Runner,
1982) e Michael Green (Logan,
2017) optaram por dar continuidade ao caos de 2019, seguindo a trilha da
decadência urbana e diferenças sociais até 2049. Ano em que um recado enigmático
(“Você nunca viu um milagre!”) do replicante
fazendeiro Sapper Morton (Dave Bautista, ótimo) e a descoberta de um segredo (capaz de abalar o poder
constituído) provocam um curto-circuito no cérebro do oficial
da LAPD, KD6-3.7 (Ryan
Gosling, perfeito) e o levam a
desconfiar de que há muito mais em comum entre humanos (que nascem com alma) e
replicantes (criados sem alma) do que desejam as autoridades. Obrigado a
decifrar a misteriosa fala e desvelar o explosivo segredo, enquanto encontra
algum sentido para o seu passado nebuloso, K
busca a ajuda do caçador Rick Deckard
(Harrison Ford, original), que vive isolado
nos escombros de Las Vegas.
Blade Runner
2049 é uma daquelas pedras raras que, em mãos dúbias, seria apenas poeira
nos olhos, mas que, nas mãos certeiras de Denis
Villeneuve (A
Chegada, 2016), a lapidação precisa a tornou uma peça elegante em cujas
facetas refletem antigas e novas ideias sobre o itinerário mecanicista do criador
e de suas criaturas no labirinto da consciência humana em prol de uma alma
técnica ou lógica. Premissa que lembrou trechos famosos do poético e polêmico Eclesiastes, que teria sido escrito por
Salomão: Eclesiastes 1:11. Já
não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser, também
delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois. 1:18. Porque,
na muita sabedoria, há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta
em dor. Eclesiastes 3:1. Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo
para todo o propósito debaixo do céu. 3:2. Há tempo de nascer, e tempo de
morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. 3:3. Tempo
de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar. 3:6. Tempo
de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora. 3:7. Tempo
de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar. 3:8. Tempo
de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz; 3:16. Vi mais
debaixo do sol que no lugar do juízo havia impiedade, e no lugar da justiça
havia iniquidade. 3:21 Quem sabe que o fôlego do homem vai para cima, e
que o fôlego dos animais vai para baixo da terra?
A trama do thriller de ficção científica Blade Runner 2049 é inteligente em suas
costuras tecnológicas e amarras humanitárias e certamente provocará as mais
diversas leituras..., sejam elas filosóficas (sagradas ou profanas) e ou descompromissadas
de “mesa de bar” (por que não?)..., mas sem banalizar o tema: escravização do
homem pelo homem ou pela máquina. Ao ampliar o questionamento sobre os
“limites” do avanço tecnológico e a decadência moral e social do homem,
Villeneuve reverencia o filme de Scott, sem lhe fazer sombra e ou ser sombreado
por ele. A época é outra e (na iminência de um o colapso econômico) o melhor é
seguir em frente, continuando a história do capítulo anterior, virando a página
e movimentando o fotograma parado há 35 anos nas retinas cinematográficas..., ou
há 30 anos na história idiossincrásica da humanidade vagueando atônita na
película do tempo.
Enfim, considerando a irretocável direção de Denis
Villeneuve; o roteiro atual, pertinente em seus questionamentos: Com o avanço
da inteligência artificial, o que será dos milhares de anos de evolução humana?
Com a evolução tecnológica restará algo de humano em nós..., ou o que fomos
também se perderá no tempo como lágrimas
na chuva?); a narrativa sem pressa (e sem didatismo piegas!), para total
imersão do espectador (jamais subestimado!) e sem (!) a intenção de ser (!) um blockbuster; a empatia dos personagens (como
não se emocionar com o destino do replicante Sapper (Bautista) ou não
se apaixonar pela adorável holograma Joi,
na pele da linda cubana Ana De Armas?)
e a excelência do elenco; o clima melancólico e a fantástica cenografia
futurista-retrô; a impressionante fotografia de Roger A. Deakins, dos
deslumbres noturnos pelas ruas de Los Angeles, apinhadas de seres nascidos e ou
criados (despreocupados com suas almas), aos claustrofóbicos ambientes soturnos
dos laboratórios de alta tecnologia aos escombros periféricos..., excetuando a
insuportável trilha sonora (igual a trocentas do gênero sci-fi) de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, que range praticamente durante quase toda a
sessão, Blade Runner 2049 é um filme
que pretendo ver mais vezes para absorver também as minúcias que deixei passar. Uma produção ímpar, contemporânea e totalmente
coerente com a cinematografia (até então) impecável de Denis Villeneuve.
Se é fã de ficção científica reflexiva (tão saborosa
quanto qualquer obra do mestre Ray Bradbury) e apaixonado pelo Blade Runner de 1982, não pode perder. Mas
recomendo, apenas para refrescar a memória, que reveja antes o filme de Ridley
Scott.
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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