O Formidável
por Joba
Tridente*
Jean-Luc Godard é um cineasta polêmico na vida, na
arte e na memória de outrem. No caso, na memória da atriz e escritora Anne
Wiazemsky (1947-2017), sua segunda mulher e autora, entre outros livros, das
autobiografias Une Année Studieuse
(2012) e Un An Après (2015), que
falam do seu relacionamento com Godard e que serviram de base para o inspirado
filme O Formidável (Le Redoutable,
2017), do diretor Michel Hazanavicius,
do fascinante O Artista (2011).
O Formidável,
do título (que, segundo o Houaiss, significa aquele “que inspira grande medo, pavor, assustador, aterrador” e ou “que suscita admiração; extremamente belo ou
bom; magnífico”) é uma divertida referência ao submarino nuclear francês Redoutable (“temível” ou “formidável”, em
operação de 1967 a 1991)..., a quem somos “apresentados”, através de uma narração
(off) descritiva, quando do seu
lançamento ao mar, na presença do General de Gaulle (1890-1970)..., e que serve
como metáfora perspicaz ao relacionamento (em “águas turbulentas”) e a troca de
mísseis amorosos e ou frustrantes do casal Anne
Wiazemsky (Stacy Martin) e Jean-Luc Godard (Louis Garrel). Aliás, metáforas mixadas a gags sensacionais não
faltam aos títulos dos parágrafos da trama e ou aos diálogos mudos dos títulos apropriados
das publicações (objetos de cena) em mãos de um ou de outra.
O Formidável
não é exatamente uma cinebiografia do também formidável e sarcástico Godard,
mas um recorte na vida do charmoso casal, que começa com as filmagens de A Chinesa (1967), estrelado por Anne
Wiazemsky, passeia longamente com os dois pelos movimentos revolucionários
franceses de 1968, e culmina com a criação do Grupo Dziga Vertov e a realização
do filme Wind From the East
(1970).
Ainda que apresente situações ridículas e contraditórias
de Godard, ao tomar consciência de que não era tão simples, enquanto
celebridade burguesa, ir ao proletariado, se engajar em causas revolucionárias
e sair atirando pra todo lado com a sua “metralhadora cheia de mágoa” e ou expor
seu ponto de vista (antissemita) em relação aos judeus e o nazismo, Hazanavicius
não julga o cineasta, unicamente expõe os fatos como teriam acontecidos,
segundo a mídia e Anne. Michel jamais menospreza Godard (que às vezes age feito
um personagem cartunesco patético). Quando, por exemplo, o famoso cineasta de Viver a Vida (1962) quer ser a grande
onda esquerdista dos movimentos estudantis, que acaba quebrando mansa e
despercebida na praia, como qualquer outra, em vez de debochar, ele o mostra
como um artista genial, porém genioso e contraditório, arrogante e autoritário,
brigando (mais) em causa própria, ocupado (mais) com o tamanho do próprio
umbigo, mesmo quando renega toda a sua obra pré-1968.
Num enredo cheio de nuances, o roteirista Michel não
abre mão de explorar com competência e bom humor a linguagem cinematográfica
inventiva de Godard e de outros mestres do cinema (como Woody Allen) em edição
primorosa. Buscando a leveza, em vez do melodrama, ele ironiza até com a
provocativa trilha sonora brincalhona que não está nem aí para a efervescência
do Maio de 1968, a crise criativa e ou as contradições políticas e
cinematográficas de Godard, e funciona (muito bem!) como personagem coadjuvante...,
aquele que deveria passar despercebido, mas costuma roubar as cenas (sérias!),
alfinetando aqui e ali a história em seus pontos-chaves. Aqui a trilha
realmente tem presença e utilidade! Afinal, é muito mais fácil cativar o grande
público (inclusive proletários e iletrados) com comédia (ainda que
involuntária) do que com tragédia.
Os críticos e cinéfilos amantes radicais de Godard
vão adorar odiar, com certeza, o formidável filme de Hazanavicius..., esquecidos
(oportunamente) que se trata das memórias da ex-mulher (Anne) do cineasta,
publicadas 30 anos depois dos fatos. E se os fatos (que se lê e ou se vê) são frutos
da memória, podem conter liberdades poéticas e falhas providenciais..., ou não!
O que não diminui o valor literário e ou cinematográfico da obra. No momento, quem
poderia confirmar (?) a veracidade do “conturbado” relacionamento amoroso de
doze anos do casal (1967-1979), incluindo a trôpega temporada militante no
fervor de 1968 (com o hilário viés dos óculos) e do mau-humor do cineasta é o
próprio Jean-Luc Godard que, desinteressado da polêmica, teria dito que o filme
é “uma ideia estúpida!”. O mais
bizarro disso tudo é que os fanáticos godardianos falam do filme como se o que
se vê na tela (fatos públicos e ou de memória) fossem blasfêmias ao cineasta
franco suíço e até se sentem (aparentemente) mais ofendidos que o próprio (?)
Godard.
Enfim, considerando o ótimo recorte cinebiográfico da
vida de Anne com Godard, que passa ao largo das hagiografias de artistas
imaculados e onde (ainda que citadas) não cabe exaltar a obra do cineasta antes
de A Chinesa e ou refletir sobre o
seu itinerário cinematográfico redesenhado com o Dziga Vertov, já que o futuro
de ambos (na literatura e no cinema) é pano para outras costuras (ou
posturas!); a excelência da direção e do roteiro de Michel Hazanavicius; a
qualidade do elenco e a admirável fotografia de Guillaume Schiffman; o equilíbrio
entre política e cinema, onde a vida do casal de artistas é o fiel da balança, pautado
com muito bom humor (e alguma divertida rabugice); as sequências antológicas (a
do carro que leva seis passageiros para Cannes é impagável)..., O Formidável só não é recomendado aos
fanáticos godardianos ranzinzas.
O grande público, até mesmo quem nunca ouviu falar do
premiado diretor Jean-Luc Godard,
vanguardista e um dos criadores da Nouvelle
Vague..., e ou se lembra da proibição, durante o governo Sarney, do seu
controverso filme Je vous salue, Marie
(1986), que com o puritanismo de 2017 seria censurado novamente neste Brasil retrógado...,
creio, irá gostar e rir um bocado (ou de vez em quando!).
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.