quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Crítica: O Formidável

O Formidável
por Joba Tridente*

Jean-Luc Godard é um cineasta polêmico na vida, na arte e na memória de outrem. No caso, na memória da atriz e escritora Anne Wiazemsky (1947-2017), sua segunda mulher e autora, entre outros livros, das autobiografias Une Année Studieuse (2012) e Un An Après (2015), que falam do seu relacionamento com Godard e que serviram de base para o inspirado filme O Formidável (Le Redoutable, 2017), do diretor Michel Hazanavicius, do fascinante O Artista (2011).


O Formidável, do título (que, segundo o Houaiss, significa aquele “que inspira grande medo, pavor, assustador, aterrador” e ou “que suscita admiração; extremamente belo ou bom; magnífico”) é uma divertida referência ao submarino nuclear francês Redoutable (“temível” ou “formidável”, em operação de 1967 a 1991)..., a quem somos “apresentados”, através de uma narração (off) descritiva, quando do seu lançamento ao mar, na presença do General de Gaulle (1890-1970)..., e que serve como metáfora perspicaz ao relacionamento (em “águas turbulentas”) e a troca de mísseis amorosos e ou frustrantes do casal Anne Wiazemsky (Stacy Martin) e Jean-Luc Godard (Louis Garrel). Aliás, metáforas mixadas a gags sensacionais não faltam aos títulos dos parágrafos da trama e ou aos diálogos mudos dos títulos apropriados das publicações (objetos de cena) em mãos de um ou de outra.


O Formidável não é exatamente uma cinebiografia do também formidável e sarcástico Godard, mas um recorte na vida do charmoso casal, que começa com as filmagens de A Chinesa (1967), estrelado por Anne Wiazemsky, passeia longamente com os dois pelos movimentos revolucionários franceses de 1968, e culmina com a criação do Grupo Dziga Vertov e a realização do filme Wind From the East  (1970).

Ainda que apresente situações ridículas e contraditórias de Godard, ao tomar consciência de que não era tão simples, enquanto celebridade burguesa, ir ao proletariado, se engajar em causas revolucionárias e sair atirando pra todo lado com a sua “metralhadora cheia de mágoa” e ou expor seu ponto de vista (antissemita) em relação aos judeus e o nazismo, Hazanavicius não julga o cineasta, unicamente expõe os fatos como teriam acontecidos, segundo a mídia e Anne. Michel jamais menospreza Godard (que às vezes age feito um personagem cartunesco patético). Quando, por exemplo, o famoso cineasta de Viver a Vida (1962) quer ser a grande onda esquerdista dos movimentos estudantis, que acaba quebrando mansa e despercebida na praia, como qualquer outra, em vez de debochar, ele o mostra como um artista genial, porém genioso e contraditório, arrogante e autoritário, brigando (mais) em causa própria, ocupado (mais) com o tamanho do próprio umbigo, mesmo quando renega toda a sua obra pré-1968.


Num enredo cheio de nuances, o roteirista Michel não abre mão de explorar com competência e bom humor a linguagem cinematográfica inventiva de Godard e de outros mestres do cinema (como Woody Allen) em edição primorosa. Buscando a leveza, em vez do melodrama, ele ironiza até com a provocativa trilha sonora brincalhona que não está nem aí para a efervescência do Maio de 1968, a crise criativa e ou as contradições políticas e cinematográficas de Godard, e funciona (muito bem!) como personagem coadjuvante..., aquele que deveria passar despercebido, mas costuma roubar as cenas (sérias!), alfinetando aqui e ali a história em seus pontos-chaves. Aqui a trilha realmente tem presença e utilidade! Afinal, é muito mais fácil cativar o grande público (inclusive proletários e iletrados) com comédia (ainda que involuntária) do que com tragédia.


Os críticos e cinéfilos amantes radicais de Godard vão adorar odiar, com certeza, o formidável filme de Hazanavicius..., esquecidos (oportunamente) que se trata das memórias da ex-mulher (Anne) do cineasta, publicadas 30 anos depois dos fatos. E se os fatos (que se lê e ou se vê) são frutos da memória, podem conter liberdades poéticas e falhas providenciais..., ou não! O que não diminui o valor literário e ou cinematográfico da obra. No momento, quem poderia confirmar (?) a veracidade do “conturbado” relacionamento amoroso de doze anos do casal (1967-1979), incluindo a trôpega temporada militante no fervor de 1968 (com o hilário viés dos óculos) e do mau-humor do cineasta é o próprio Jean-Luc Godard que, desinteressado da polêmica, teria dito que o filme é “uma ideia estúpida!”. O mais bizarro disso tudo é que os fanáticos godardianos falam do filme como se o que se vê na tela (fatos públicos e ou de memória) fossem blasfêmias ao cineasta franco suíço e até se sentem (aparentemente) mais ofendidos que o próprio (?) Godard.


Enfim, considerando o ótimo recorte cinebiográfico da vida de Anne com Godard, que passa ao largo das hagiografias de artistas imaculados e onde (ainda que citadas) não cabe exaltar a obra do cineasta antes de A Chinesa e ou refletir sobre o seu itinerário cinematográfico redesenhado com o Dziga Vertov, já que o futuro de ambos (na literatura e no cinema) é pano para outras costuras (ou posturas!); a excelência da direção e do roteiro de Michel Hazanavicius; a qualidade do elenco e a admirável fotografia de Guillaume Schiffman; o equilíbrio entre política e cinema, onde a vida do casal de artistas é o fiel da balança, pautado com muito bom humor (e alguma divertida rabugice); as sequências antológicas (a do carro que leva seis passageiros para Cannes é impagável)..., O Formidável só não é recomendado aos fanáticos godardianos ranzinzas.

O grande público, até mesmo quem nunca ouviu falar do premiado diretor Jean-Luc Godard, vanguardista e um dos criadores da Nouvelle Vague..., e ou se lembra da proibição, durante o governo Sarney, do seu controverso filme Je vous salue, Marie (1986), que com o puritanismo de 2017 seria censurado novamente neste Brasil retrógado..., creio, irá gostar e rir um bocado (ou de vez em quando!).  



*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Crítica: Blade Runner 2049

Blade Runner 2049
por Joba Tridente

Em Blade Runner (1982), do britânico Ridley Scott, há um dos mais belos e emblemáticos monólogos do cinema, dito pelo replicante/androide Roy Batty (Rutger Hauer): “- Vi certas coisas que a sua gente não acreditaria. Naves de ataque ardendo ao largo de Orion. Vi raios C cintilando na escuridão junto ao Portão de Tannhäuser. Todos estes momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”. Em Blade Runner 2049, do canadense Denis Villeneuve, não há nenhum monólogo e ou cena equivalente. Porém, há uma magnífica narrativa que faz jus ao clássico/cult ao seguir em frente com a história carismática que encanta os cinéfilos há 35 anos.


Com base em personagens criados pelo escritor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), para o romance de ficção científica Do Androids Dream of Electric Sheep? (Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?), lançado em 1966, em vez de um mundo novo, com gosto molhado de distopia zero e escravos androides de última geração, os roteiristas Hampton Fancher (Blade Runner, 1982) e Michael Green (Logan, 2017) optaram por dar continuidade ao caos de 2019, seguindo a trilha da decadência urbana e diferenças sociais até 2049. Ano em que um recado enigmático (“Você nunca viu um milagre!”) do replicante fazendeiro Sapper Morton (Dave Bautista, ótimo) e a descoberta de um segredo (capaz de abalar o poder constituído) provocam um curto-circuito no cérebro do oficial da LAPD, KD6-3.7 (Ryan Gosling, perfeito) e o levam a desconfiar de que há muito mais em comum entre humanos (que nascem com alma) e replicantes (criados sem alma) do que desejam as autoridades. Obrigado a decifrar a misteriosa fala e desvelar o explosivo segredo, enquanto encontra algum sentido para o seu passado nebuloso, K busca a ajuda do caçador Rick Deckard (Harrison Ford, original), que vive isolado nos escombros de Las Vegas.  


Blade Runner 2049 é uma daquelas pedras raras que, em mãos dúbias, seria apenas poeira nos olhos, mas que, nas mãos certeiras de Denis Villeneuve (A Chegada, 2016), a lapidação precisa a tornou uma peça elegante em cujas facetas refletem antigas e novas ideias sobre o itinerário mecanicista do criador e de suas criaturas no labirinto da consciência humana em prol de uma alma técnica ou lógica. Premissa que lembrou trechos famosos do poético e polêmico Eclesiastes, que teria sido escrito por Salomão: Eclesiastes 1:11. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser, também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois. 1:18. Porque, na muita sabedoria, há muito enfado; e o que aumenta em conhecimento, aumenta em dor. Eclesiastes 3:1. Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. 3:2. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. 3:3. Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar. 3:6. Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora. 3:7. Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar. 3:8. Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz; 3:16. Vi mais debaixo do sol que no lugar do juízo havia impiedade, e no lugar da justiça havia iniquidade. 3:21 Quem sabe que o fôlego do homem vai para cima, e que o fôlego dos animais vai para baixo da terra?


A trama do thriller de ficção científica Blade Runner 2049 é inteligente em suas costuras tecnológicas e amarras humanitárias e certamente provocará as mais diversas leituras..., sejam elas filosóficas (sagradas ou profanas) e ou descompromissadas de “mesa de bar” (por que não?)..., mas sem banalizar o tema: escravização do homem pelo homem ou pela máquina. Ao ampliar o questionamento sobre os “limites” do avanço tecnológico e a decadência moral e social do homem, Villeneuve reverencia o filme de Scott, sem lhe fazer sombra e ou ser sombreado por ele. A época é outra e (na iminência de um o colapso econômico) o melhor é seguir em frente, continuando a história do capítulo anterior, virando a página e movimentando o fotograma parado há 35 anos nas retinas cinematográficas..., ou há 30 anos na história idiossincrásica da humanidade vagueando atônita na película do tempo.


Enfim, considerando a irretocável direção de Denis Villeneuve; o roteiro atual, pertinente em seus questionamentos: Com o avanço da inteligência artificial, o que será dos milhares de anos de evolução humana? Com a evolução tecnológica restará algo de humano em nós..., ou o que fomos também se perderá no tempo como lágrimas na chuva?); a narrativa sem pressa (e sem didatismo piegas!), para total imersão do espectador (jamais subestimado!) e sem (!) a intenção de ser (!) um blockbuster; a empatia dos personagens (como não se emocionar com o destino do replicante Sapper (Bautista) ou não se apaixonar pela adorável holograma Joi, na pele da linda cubana Ana De Armas?) e a excelência do elenco; o clima melancólico e a fantástica cenografia futurista-retrô; a impressionante fotografia de Roger A. Deakins, dos deslumbres noturnos pelas ruas de Los Angeles, apinhadas de seres nascidos e ou criados (despreocupados com suas almas), aos claustrofóbicos ambientes soturnos dos laboratórios de alta tecnologia aos escombros periféricos..., excetuando a insuportável trilha sonora (igual a trocentas do gênero sci-fi) de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch, que range praticamente durante quase toda a sessão, Blade Runner 2049 é um filme que pretendo ver mais vezes para absorver também as minúcias que deixei passar. Uma produção ímpar, contemporânea e totalmente coerente com a cinematografia (até então) impecável de Denis Villeneuve.  

Se é fã de ficção científica reflexiva (tão saborosa quanto qualquer obra do mestre Ray Bradbury) e apaixonado pelo Blade Runner de 1982, não pode perder. Mas recomendo, apenas para refrescar a memória, que reveja antes o filme de Ridley Scott.


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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