Cegonhas - A História Que Não Te Contaram
por Joba Tridente
No meu tempo
de menino, lá no interior de São Paulo, acreditava que, segundo os adultos, os
bebês eram trazidos pelas cegonhas, mesmo jamais ter visto uma..., ou talvez
por isso. Conforme fui crescendo e aprendendo a ler, descobri, nos Contos de
Fadas, que as crianças, principalmente as minúsculas, como a Pequerrucha (Thumbelina ou Polegarzinha), de Hans Christian Andersen, poderiam nascer de uma
flor. Mais tarde soube que nos Estados Unidos da América, algumas crianças
nasciam em pés de repolho. Depois, descobri outras formas mais prazerosas de
fazer bebês, que dispensavam aves, jardins e hortas.
Bem, esse meu
tempo lúdico ficou lá pra trás, mas foi bem divertido reencontrá-lo na surreal
animação Cegonhas - A História Que Não Te
Contaram, um filme onde o que não falta é imaginação para brincar com estereótipos
da família tradicional (americana?) e seu mirabolante conservadorismo (religioso?).
Segundo a trama, escrita por Nicholas
Stoller, também seu diretor, ao lado de Doug Sweetland, há muitos anos (ou talvez nem tanto) cabia a uma
imensa colônia de cegonhas, instalada no cume de uma altíssima montanha, o
serviço de produção e entregas de bebês para os casais em todo o mundo. Para
tanto, bastava que o casal interessado enviasse uma carta, com as suas características,
ao grupo, lá no topo do mundo, para que, em pouco tempo, um bebê fosse produzido
(nas alturas) e entregue (em terra firme) no lar doce lar dos humanos. Mas,
sabe como é, com a evolução da humanidade, o desenvolvimento industrial e
tecnológico, os casais aprenderam a produzir os próprios filhos e dispensaram o
método ultrapassado das cegonhas..., que não tiveram outra escolha a não ser
mudar de ramo e passar a entregar eletroeletrônicos de última geração da Loja da Esquina.
É aí que
começa essa história maluca e engraçada. Desde que trocaram a produção e
entrega de bebês por um bem sucedido comércio eletrônico, o empreendimento das
cegonhas só faz crescer. No entanto, o funcionário padrão Junior e a desastrada órfã humana Tulipa podem comprometer os negócios da empresa se não conseguirem
entregar (antes que o chefão descubra) uma bela criança que foi produzida
acidentalmente. O problema da entrega nem é a falta de treino da dupla
improvável, mas os perigos que vão encontrar pelo caminho, como a determinada e
hilária alcateia de lobos capaz das mais absurdas transformações para ficar
com o bebê e ainda roubar as cenas.
Cegonhas - A História Que Não Te Contaram é daquelas animações que têm tudo
para agradar toda a família. O roteiro resolve com criatividade a conhecida saga
do bebê perdido (de outras animações), tem ótimo ritmo e aquele humor nonsense,
meio cartum-pastelão, com uma pegada de humor negro (com final genial) que não
falha. Além da cenografia impecável, chama a atenção a excelência técnica dos expressivos
e carismáticos personagens, com seus olhos enormes. É incrível como um mero (?)
detalhe (olhos) é suficiente para distinguir os personagens desta com os de
outras animações. O enredo, repleto de ação e aventura (ao gosto da criançada e
sem desapontar os adultos), com boas reviravoltas, diverte e emociona, sem ser
piegas, ao questionar sutilmente a constituição de laços familiares, filhos
solitários e pais ausentes, em significativas sequências. Algumas cenas da órfã
Tulipa e do filho único de um casal
de corretores “digitais” são emblemáticas nessa discussão.
Enfim, boa
direção, trama curiosa, personagens cativantes (quem resiste ao sorriso de um
bebê?), bons números musicais (que poderiam ser vertidos para o português),
piadas saudáveis, crítica aos viciados em trabalho (workaholic) e aos patrões cruéis, fazem de Cegonhas - A História Que Não Te Contaram um excelente e gracioso programa
para reflexão e passagem do tempo (que, por sinal, é fortemente marcado em
diálogos pertinentes). Vale reforçar que, embora o tema seja a produção de
bebês, os papais não precisam ficar preocupados, pois não se trata de um filme de
educação sexual. O desenho (basicamente uma ficção científica leve) é uma bela e
gostosa fantasia sem nenhuma intenção de ensinar os pequenos a fazerem filhos.
Ele apenas brinca, de forma inteligente, com elementos da velha lenda escandinava
popularizada por Hans Christian Andersen (1805-1875) em As Cegonhas, que você lê abaixo.
Ah, e não
chegue atrasado ou perde um ótimo curta, feito com pecinhas de Lego, sobre Mestres do Kung Fu.
ilustração de William Heath Robinson (1872–1944)
|
AS CEGONHAS
Hans Christian Andersen
UMA cegonha construíra
seu ninho
no telhado da última
casa de um
povoado . A mamãe
cegonha estava sentada no ninho com seus filhotes , que assomavam seus
biquinhos negros , pois
ainda não
haviam adquirido sua cor vermelha .
Papai-cegonha estava a pouca distância , na beira
do telhado , em
pé e entorpecido, com
um pé
recolhido embaixo do corpo , fazendo de sentinela .
Parecia esculpido em madeira , devido
à sua imobilidade .
- Minha esposa deve ficar satisfeita ao ver uma sentinela guardando seu
ninho - pensava. - Ninguém
sabe que sou seu
marido e talvez
todos pensem que
recebi ordens para
montar guarda
aqui . Isso
é muito importante .
E continuou de pé num só pé , porque as cegonhas
são verdadeiras equilibristas .
0 primeiro
morrerá de urna estocada ,
0 segundo
queimado
E o terceiro enforcado.
- Que dizem esses garotos ?
- perguntaram os filhotes . - Dizem que morreremos queimados ou
enforcados?
- Não façam caso - respondeu a mamãe-cegonha. - Não os ouçam, pois ninguém lhes
fará nenhum mal .
Mamãe-cegonha consolou seus
pequeninos , dizendo-lhes:
- Não se preocupem com isso . Vejam
seu pai
como está firme
em cima
de um só
pé .
- Temos muito medo - replicaram os filhotes ,
escondendo as cabecinhas dentro do ninho .
No dia seguinte , quando
os meninos voltaram a brincar ,
viram novamente as cegonhas
e repetiram a canção .
- E' verdade que
morreremos queimados ou enforcados? -
perguntaram de novo os filhotes .
- De forma alguma! - replicou a mãe . - Vocês
aprenderão a voar . Eu
os ensinarei. Logo iremos para
os campos em
busca de rãs .
Elas vivem na água
e quando nos
veem, fazem muitos cumprimentos
e começam a coaxar . Mas
nós as engoliremos. Esse
é um verdadeiro
banquete , de que
vocês vão
gostar muito .
- E depois ? -
perguntaram os filhotes .
- De qualquer forma é bem possível
que acabemos do jeito
que dizem os garotos .
Veja, eles voltam a cantar
a mesma coisa .
- Ouçam a mim e não a eles -
replicou secamente a mãe-cegonha. - Depois das grandes
manobras , voaremos para
os países cálidos ,
que ficam muito
longe , para além dos bosques
e das montanhas . Iremos para
o Egito, onde existem casas de três cantos , cujas pontas
chegam até as nuvens ;
chamam-se Pirâmides e são muito mais antigas do que
qualquer cegonha pode imaginar .
Ali existe um
rio que
inunda as suas margens
e toda a terra
se cobre de lodo .
E então podemos andar
por ali
comodamente, sem deixar
de comer rãs .
- Oh ! - exclamaram os filhotes .
- Sim , é esplêndido . Durante
o dia inteiro
não se faz mais
do que comer .
E enquanto nós
estamos bem ali ,
neste país não
há uma só folha
nas arvores; e faz tanto frio que as nuvens se gelam em
pedacinhos que caem ao solo .
Queria descrever a neve , mas não sabia fazê-lo melhor .
- E as crianças más não se gelam em
pedacinhos? - perguntaram os filhotes .
- Não , mas lhes
acontece algo parecido e têm de passar muitos dias presas em suas casas escuras; vocês ,
em troca ,
voarão para países
distantes , recebendo o calor do sol entre as flores .
Passou-se algum tempo e os filhotes
se desenvolveram bastante para
ficarem em pé
no ninho e olharem à sua volta .
Papai-cegonha voava todos os dias de ida e volta ao ninho com rãs e serpentes , além
de outros bons
bocados que
conseguia arranjar . E era
muito divertido
observar as manobras
que fazia para
divertir seus
filhos ; virava a cabeça
completamente em
direção à cauda e batia o
bico como
se fosse um chocalho .
E lhes contava tudo
que lhe
acontecera nos pântanos .
- Bem , já
é hora de que
aprendam a voar - disse um
dia sua
mãe .
E os pequenos tiveram
de ficar em pé , na beira do
telhado . Quanto
lhes custou conservar
o equilíbrio batendo as asas e como
estiveram a ponto de cair !
- Agora olhem para mim - disse a mãe . - Vejam como
têm de sustentar a cabeça .
E os pés se movem assim .
Um , dois , um , dois . Desta forma poderão percorrer o mundo inteiro .
- Não quero voar - disse um dos filhotes voltando para o ninho . - Não
faço questão de ir para os países mais quentes .
- Quer gelar
aqui , ao chegar
o inverno ? Prefere que
venham os meninos e o queimem ou enforquem? Não
me custará nada
chamá-los.
- Não , não ! - respondeu assustada a pequena
cegonha .
E imediatamente voltou
para a beira
do telhado , onde
já estavam os irmãos .
No terceiro dia todos
voavam muito bem .
Tentaram voar por
mais tempo ,
porém , quando
se esqueceram de bater com
as asas , aconteceu a queda
irremediável .
Os meninos que as observavam entoaram novamente
a sua canção .
- Querem que desçamos
voando e lhes arranquemos os olhos ? - perguntaram as pequenas
cegonhas .
- Não , deixem-nos em paz - disse
a mãe . Prestem atenção
ao que faço, pois
isso é muito
mais importante .
Um , dois , três . Agora
vamos voar para a direita ; um , dois , três ; agora para a esquerda e em volta da chaminé .
Já foi bastante
bem . Este último voo foi tão bom , que , como prêmio , eu consentirei que
me acompanhem ao pântano
amanhã . Várias cegonhas
distintas vão até
lá com
seus filhos ,
de modo que
vocês devem esforçar-se para
que os meus
sejam os melhores de todos . Não se
esqueçam de levantar as cabeças .
Isso é muito
elegante e confere um
ar de extrema
importância .
- Mas não nos
vingaremos desses meninos maus ? - perguntaram as pequenas
cegonhas .
- Deixem que gritem o quanto quiserem; vocês
voarão para a terra das pirâmides , enquanto
que eles
ficarão aqui gelando. Nessa ocasião não
haverá por aqui
nem uma folha
verde nem
uma maçã doce .
- Pois nós
queremos vingar-nos disseram as pequenas
cegonhas .
- Primeiro vamos ver
como se comportam nas manobras . Se cometerem algum
engano e o general
se vir obrigado
a atravessar-lhes o peito com o seu bico , os meninos
da rua terão acertado na sua profecia .
Veremos como se comportam.
- Você verá - responderam otimistas os filhotes .
E não pouparam esforços . Todos
os dias praticavam, até
que foram capazes
de voar como seus próprios pais o faziam. Era
um prazer
observá-los.
Chegou o outono . Todas
as cegonhas começaram a reunir-se, antes de empreenderem a viagem
aos países quentes ,
nos quais
passariam o inverno .
Aquelas sim é que foram verdadeiras manobras- Tiveram que voar sobre os bosques ,
cidades e povoados ,
para experimentarem as asas ,
pois iriam realizar uma longa viagem .
As jovens cegonhas
se comportaram tão bem ,
que receberam uma quantidade
enorme de rãs
e serpentes como
recompensa . Receberam também
ótima colocação
e logo foram comer
tranquilamente coisas que fizeram, pois seu apetite era enorme .
- Agora nos vingaremos - disseram.
- Sem dúvida - replicou sua
mãe . - Agora
vocês vão
tomar conhecimento
do meu plano
e acho que gostarão dele. Sei onde fica o reservatório
em que
se encontram os pequenos humanos e onde
ficam até que
as cegonhas vão
buscá-los para levá-los para
a casa de seus
pais . As lindas criaturinhas estão
dormindo, sonhando coisas muito agradáveis
que nunca
mais voltarão a sonhar .
Todos os pais
desejam filhos e todas as crianças almejam ter um irmãozinho ou
uma irmãzinha, destinados aos meninos que nunca
cantaram essa canção contra nós ou que não tenham caçoado das cegonhas .
Todavia , os que
a cantaram, jamais receberão um irmão ou uma irmãzinha.
- E que faremos com esse menino mau que cantou a canção ?
- gritaram as pequenas cegonhas . - Que
faremos com esse
garoto ? Porque
devemos fazer algo
para vingar-nos como
desejamos.
- No reservatório há um menino morto . Morreu sonhando, sem
se dar conta . Vamos
buscá-lo e levá-lo para a casa
desse menino , que
chorará muito ao ver
que lhe
levamos uma criança morta .
Em troca ,
vocês não
se esquecerão do menino bom que diz:
"E' uma vergonha caçoar
assim das cegonhas ".
E foi tal como disse. E é por
isso também ,
que , em
nossos dias ,
todas as cegonhas levam o nome de Pedro.
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