sábado, 30 de janeiro de 2016

Crítica: Êpa! Cadê o Noé?


Mesmo sendo fã  dos quadrinhos e das antigas animações (ou talvez por isso!), não me senti confortável para escrever sobre Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, O Filme.  O desenho dos personagens, com os traços (olhos e bocas) dançando na cara deles, me incomodou e acabou me desconectando da história assim-assim..., que reconheço, melhora um pouco do segundo para o terceiro ato. O Bom Dinossauro foi outra produção que não me animou. Além do traço muito feio dos dinossauros, a fraquinha trama (sobre insegurança) infantil (com referências inclusive ao concorrente A Era do Gelo) não me convenceu. Todavia, me simpatizei com o Êpa! Cadê o Noel?..., ainda que o título tenha nada a ver com a narrativa. Por falar em título, o curioso (não entendi a razão) é que em cada país, onde a animação é lançada, o título original: Ooops! Die Arche ist weg… (tipo: Oooops! A Arca se foi...) é modificado: Onde está a Arca?; Noé sumiu!; Cadê Noé?; De dois em dois...., etc.


Êpa! Cadê o Noé? (Ooops! Die Arche ist weg, 2015, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Irlanda), dirigido por Toby Genkel e Sean McCormack, é uma animação computadorizada que apresenta uma trama inspirada na lenda bíblica da Arca de Noé e é interpretada somente por animais míticos e ou reais. Mas fica tranquilo, tem nada (!) a ver com apelativa doutrinação religiosa..., o seu foco é muito mais pertinente: sociabilidade. Ou seja, fala de família e formação moral, porém, numa linguagem descompromissada e, portanto, muito mais eficaz para espectadores de qualquer idade.


A história começa com a revelação de que uma avassaladora enchente está a caminho e que somente os animais convidados, carnívoros e herbívoros, poderão subir a bordo de um Arca e se salvar do dilúvio iminente. Na fila dos bichos privilegiados, as duplas são formadas por casais e ou pais e filhos..., como é o caso dos gentis Dave e seu filho Finny, dois míticos Nestrians, que ao fazer o check-in não têm como comprovar que são animais de verdade e que estão na Lista VIP, e das estressadas Hazel e sua filha Leah, duas Grymps que acabam envolvidas num plano maluco para abrigar os dois excluídos. Enquanto os adultos discutem sobre invasão de privacidade, Leah e Finny decidem explorar o local e acabam do lado de fora da Arca e em meio à inundação. Daí, enquanto os pais procuram pelos seus filhotes na imensa Arca, os jovens, em terra, tentam encontrar uma forma de voltar para a segurança da embarcação.


Seguindo lado a lado, as histórias de dedicação e preocupação (dos pais) e a de aventura e ocupação (dos filhos) abrem espaço para uma fascinante análise do macrocosmo dos adultos dentro da Arca, desvelando a intolerância, o preconceito, o racismo, a burocracia, dos passageiros e da tripulação..., e do microcosmo dos jovens perdidos, colocando em prática todo o aprendizado de sobrevivência fora do “ninho”. O universo infantil de Finny e Leahl, repleto de contrastes e confrontos, é sem dúvida muito mais interessante que o dos seus pais. De um lado, o ingênuo Finny que, por viver uma vida itinerante, tem carência de amigos e está sempre disponível para novas amizades com qualquer espécie que possa também compartilhar conhecimento e um gostoso abraço para levantar o astral. De outro, a “arrogante” Leah, criada para ser totalmente independente num mundo competitivo e machista, o que a faz evitar qualquer tipo de amizade e ou ajuda. Duas tocantes realidades em pauta para muito texto: pertencimento e afetividade (em Finny) e isolamento e desprezo (em Leah). Duas crianças vivendo o que aprenderam em casa com seus pais.


A propósito do argumento desta animação europeia, coincidentemente publiquei recentemente, no meu blog literário Falas ao Acaso, um pertinente decálogo sobre educação e família, escrito pelo pediatra e psicanalista argentino Arnaldo Rascovsky (1907-1995): Os meninos aprendem o que vivem..., que tem tudo a ver com o que acabei de dizer: Se um menino vive criticado, aprende a condenar./ Se um menino vive com hostilidade, aprende a brigar./ Se um menino vive humilhado, aprende a sentir-se culpado./ Se um menino vive com tolerância, aprende a ser tolerante./ Se um menino vive com estímulos, aprende a confiar./ Se um menino vive estimado, aprende a estimar./ Se um menino vive com justiça, aprende a ser justo./ Se um menino vive com segurança, aprende a ter fé./ Se um menino vive com aprovação, aprende a querer-se bem./ Se um menino vive com aceitação e amizade, aprende a encontrar amor no mundo. Se quiser, confira o decálogo em espanhol, no blog.


O enredo desta interessantíssima fábula (contemporânea) pode não até ser dos mais originais..., há muita animação (e até ficção) que fala de animais em fuga, por causa de alguma catástrofe natural, e de pais em busca de filhos perdidos. Isso é fato, mas não é o “X” da questão em Êpa! Cadê o Noé?. O que conta, aqui, é a sagacidade dos seus realizadores no desenvolvimento do tema socialização. Para o espectador adulto (pensante): uma grande metáfora dos dias presentes (?). Para o espectador infantil (receptivo): uma história divertida, sensível, e com mensagem muito bacana e nada piegas sobre relacionamentos. Literalmente uma animação para pais e filhos..., que podem ter de rever seus conceitos após a sessão.


Êpa! Cadê o Noé?, não é uma náufraga animação à deriva num mercado dominado pelos grandes estúdios norte-americanos. Muito pelo contrário, além do excelente conteúdo, tecnicamente tem ótimo desempenho, principalmente na variação de texturas, como, por exemplo, nas peles (de pelúcia) dos Nestrians e (sedosa) dos Grymps. Os personagens são bem resolvidos e o desenho da maioria é agradável (e fofo!). A paleta de cores é maravilhosa, o ritmo de ação (pastelão) e aventura é muito bom e o humor leve funciona para todos os públicos. Embora uma ou outra situação pareça já vista em outros filmes do gênero, há soluções bem criativas, como o hilário disfarce dos fantásticos Nestrians e o rotineiro serviço de bordo da Arca. É também notável a delicadeza na direção das sequências mais tocantes, envolvendo a reveladora jornada dos filhotes.


Enfim, considerando a emoção (em cenas de cortar o coração) que me tomou; as deliciosas gags; as linhas sobre criacionismo e evolucionismo camufladas no subtexto..., ainda que o título brasileiro seja ridículo e gratuito, Êpa! Cadê o Noé? é um filme que pode ancorar com segurança para pais e filhos e educadores em qualquer sala de cinema.

Ah, em 2015, Êpa! Cadê o Noé? ganhou o prémio Pardal de Ouro, de Melhor Filme Animado, na 23ª edição do Festival Alemão de Mídia Infantil (Deutsche Kinder-Medien-Festival Goldener Spatz).

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