domingo, 4 de outubro de 2015

Crítica: Homem Comum


Recentemente vi três documentários que têm como meta a linguagem cinematográfica.


1. Tudo por Amor ao Cinema, cinebiografia do cinéfilo Cosme Alves Netto (1937-1996), fecundo pesquisador (“todo filme tem a sua importância”) e gestor da Cinemateca do MAM, contada através da instigante narrativa de Aurélio Michiles, que costura, com precisão cirúrgica, cenas e sequências de filmes clássicos para traduzir, com elegância e charme (artesanal de moviola), fatos e saudades relatados por cineastas, historiadores e críticos de cinema. Um belo trabalho de pesquisa e apuro técnico na edição primorosa, que exige não apenas conhecimento da cinematografia mundial, mas a sensibilidade do instante da fala, do gesto, da ação de uma trama continuando em outra e sem perder o sentido original.


2. Jia Zhangke, um Homem de Fenyang, do diretor Walter Salles, traz aos olhos ocidentais a corajosa trajetória do premiado cineasta Jia Zhangke, constantemente perseguido pela censura chinesa. Salles, mais que parceiro de profissão, se permite ouvinte curioso, um espectador que se deixa envolver pela instigante história de Zhangke. O documentário passeia por cidades e sets de filmagem, resgatando trechos de filmes de um diretor que se entrega por inteiro e desabafa corajoso sobre família, antigos amigos e sua obra quase desconhecida na China. Um dos pontos altos da narrativa, talvez o mais tocante e divertido, é o do cineasta desvelando como, por ironia do destino ou do novo capitalismo, acabou (re)encontrando um filme seu que estava censurado e, portanto, “desaparecido”...


3. Homem Comum, de Carlos Nader, é uma obra que faz valer a máxima: “a arte de dizer muito com pouco”. Bem, nem tão pouco assim, se você observar e absorver a simbologia das entrelinhas. Nos anos 1990, inebriado com a transcendência do admirável Ordet (A Palavra, 1955), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, o documentarista e roteirista paulista Carlos Nader decidiu pegar uma câmera, ir a estacionamentos de caminhoneiros e, aleatoriamente, perguntar aos motoristas sobre “a estranheza (o sentido) da vida”. Em troca recebia respostas fragmentadas e quase inaudíveis em sua simplicidade complexa. É que, ser simples na essência não é uma qualidade comum a todo ser humano, e, a certos questionamentos esotéricos, o melhor é desentender (a matéria). Todavia, em meio à desconexão na estrada, entre uma entrevista inócua e outra, Nader encontrou o esperançoso caminhoneiro paranaense Nilson de Paula (“ninguém tem mais fé na vida do que eu”), embarcou em sua boleia e, além da rotina do viajante, conheceu a sua mulher Jane e a sua filha Luciane e ouviu as histórias de vida dos três.


Homem Comum (Brasil, 2014) foi rodado ao longo de 20 anos, sem que o diretor soubesse exatamente o que iria resultar e o que queria contar com as filmagens, já que o seu argumento metafísico não encontrara o eco satisfatório nos fatos familiares e ou de trabalho do caminhoneiro. Não fosse um inesperado telefonema de Nilson e o pedido para que Carlos levasse a câmera para um registro inusitado, provavelmente o material continuaria no aguardo de algum sentido para vir à luz.

Apoiado na simplicidade e na sinceridade contagiante do protagonista, Homem Comum cresce envolvente cena a cena. Emblemático..., ao menos em duas sequências, Nader conduz (consciente?) a narrativa a uma curiosa reflexão sobre a prática do amor. Na primeira, em que Nilson e Jane contam como se conheceram e a razão do casamento, é fascinante sentir como a palavra “coração”, na fala de Nilson, consegue transcender em seu simbolismo universal. Todavia, não sei se, diante de tanta espontaneidade, todo espectador conseguirá ir além do divertido e emocionante diálogo do casal que (por si só) é de uma beleza de marejar. Na segunda, tão incômoda quanto tocante, o ponto de ebulição está no hábil registro (côncavo!) do claustrofóbico transporte de porcos para o matadouro, que resulta no desabafo (convexo!) de Nilson sobre a vida e a morte.


Falar do cotidiano rotineiro de um homem comum, não faz do documentário um filme rotineiro e consequentemente simplório. Pelo contrário, ao alternar as suas sequências com as do filme Ordet, de Carl Dreyer, lembrando vagamente a estética de Tudo por Amor ao Cinema, de Aurélio Michiles, o diretor Carlos Nader compõe e recompõe com dinamismo a narrativa de Homem Comum. Graças à montagem em parceria com André Braz, a interação entre o documentário brasileiro e o drama dinamarquês é (também) minuciosa na continuidade e dá a ele uma curiosa roupagem de ficção. Mas, é bom que se diga, ainda que se queira híbrido, em sua linguagem, não é um doc-ficção (tão em voga).


Homem Comum, prêmio de melhor documentário brasileiro no Festival É Tudo Verdade (2014). Num cinema, ou cineclube perto de você!

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