Recentemente vi três documentários que têm como meta
a linguagem cinematográfica.
1. Tudo por Amor ao Cinema, cinebiografia
do cinéfilo Cosme Alves Netto
(1937-1996), fecundo pesquisador (“todo
filme tem a sua importância”) e gestor da Cinemateca do MAM, contada através
da instigante narrativa de Aurélio
Michiles, que costura, com precisão cirúrgica, cenas e sequências de filmes
clássicos para traduzir, com elegância e charme (artesanal de moviola), fatos e
saudades relatados por cineastas, historiadores e críticos de cinema. Um belo
trabalho de pesquisa e apuro técnico na edição primorosa, que exige não apenas
conhecimento da cinematografia mundial, mas a sensibilidade do instante da
fala, do gesto, da ação de uma trama continuando em outra e sem perder o
sentido original.
2. Jia Zhangke, um Homem de Fenyang, do diretor Walter Salles, traz aos olhos ocidentais a corajosa trajetória do premiado
cineasta Jia Zhangke, constantemente
perseguido pela censura chinesa. Salles, mais que parceiro de profissão, se
permite ouvinte curioso, um espectador que se deixa envolver pela instigante
história de Zhangke. O documentário passeia por cidades e sets de filmagem, resgatando
trechos de filmes de um diretor que se entrega por inteiro e desabafa corajoso
sobre família, antigos amigos e sua obra quase desconhecida na China. Um dos
pontos altos da narrativa, talvez o mais tocante e divertido, é o do cineasta desvelando
como, por ironia do destino ou do novo capitalismo, acabou (re)encontrando um
filme seu que estava censurado e, portanto, “desaparecido”...
3. Homem Comum, de Carlos Nader, é uma obra que faz valer a máxima: “a arte de dizer muito com pouco”. Bem,
nem tão pouco assim, se você observar e absorver a simbologia das entrelinhas. Nos
anos 1990, inebriado com a transcendência do admirável Ordet (A Palavra, 1955),
do dinamarquês Carl Theodor Dreyer, o
documentarista e roteirista paulista Carlos Nader decidiu pegar uma câmera, ir a
estacionamentos de caminhoneiros e, aleatoriamente, perguntar aos motoristas
sobre “a estranheza (o sentido) da vida”. Em troca recebia respostas
fragmentadas e quase inaudíveis em sua simplicidade complexa. É que, ser
simples na essência não é uma qualidade comum a todo ser humano, e, a certos
questionamentos esotéricos, o melhor é desentender (a matéria). Todavia, em
meio à desconexão na estrada, entre uma entrevista inócua e outra, Nader encontrou
o esperançoso caminhoneiro paranaense Nilson
de Paula (“ninguém tem mais fé na
vida do que eu”), embarcou em sua boleia e, além da rotina do viajante, conheceu
a sua mulher Jane e a sua filha Luciane e ouviu as histórias de vida dos
três.
Homem Comum (Brasil, 2014) foi rodado ao longo de 20
anos, sem que o diretor soubesse exatamente o que iria resultar e o que queria
contar com as filmagens, já que o seu argumento metafísico não encontrara o eco
satisfatório nos fatos familiares e ou de trabalho do caminhoneiro. Não fosse um
inesperado telefonema de Nilson e o pedido para que Carlos levasse a câmera
para um registro inusitado, provavelmente o material continuaria no aguardo de
algum sentido para vir à luz.
Apoiado na
simplicidade e na sinceridade contagiante do protagonista, Homem Comum cresce envolvente cena a cena. Emblemático..., ao menos
em duas sequências, Nader conduz (consciente?) a narrativa a uma curiosa
reflexão sobre a prática do amor. Na
primeira, em que Nilson e Jane contam como se conheceram e a razão do casamento,
é fascinante sentir como a palavra “coração”,
na fala de Nilson, consegue transcender em seu simbolismo universal. Todavia, não
sei se, diante de tanta espontaneidade, todo espectador conseguirá ir além do
divertido e emocionante diálogo do casal que (por si só) é de uma beleza de
marejar. Na segunda, tão incômoda quanto tocante, o ponto de ebulição está no
hábil registro (côncavo!) do claustrofóbico transporte de porcos para o
matadouro, que resulta no desabafo (convexo!) de Nilson sobre a vida e a morte.
Falar do
cotidiano rotineiro de um homem comum, não faz do documentário um filme
rotineiro e consequentemente simplório. Pelo contrário, ao alternar as suas sequências
com as do filme Ordet, de Carl
Dreyer, lembrando vagamente a estética de Tudo por Amor ao Cinema, de Aurélio Michiles, o diretor Carlos Nader
compõe e recompõe com dinamismo a narrativa de Homem Comum. Graças à montagem em parceria com André Braz, a interação
entre o documentário brasileiro e o drama dinamarquês é (também) minuciosa na
continuidade e dá a ele uma curiosa roupagem de ficção. Mas, é bom que se diga,
ainda que se queira híbrido, em sua linguagem, não é um doc-ficção (tão em
voga).
Homem Comum,
prêmio de melhor documentário brasileiro no Festival
É Tudo Verdade (2014). Num cinema, ou cineclube perto de você!
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