Há uma ordem, excessivamente autoritária na
hierarquia do contratante (patrão) e do contratado (empregado): “- Você não está aqui (ou foi contratado)
para pensar, mas para cumprir ordens!”..., que cai como uma luva de espinhos
na argumentação ambígua do tenente Gregório
Fortunato (Thiago Justino),
chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas
(Tony Ramos), sobre o atentado a Carlos Lacerda (Alexandre Borges), em que foi morto o Major da Aeronáutica Rubens Vaz.
O “pensante” e guarda-costas teria feito o que
fez para resguardar a honra do presidente e ex-ditador Getúlio Vargas (1882-1954) dos ataques virulentos, via imprensa, do
polêmico jornalista Carlos Lacerda
(1914-1977). O fidelíssimo segurança “pensava” que a crítica política de
Lacerda a Vargas incomodava o presidente e então, num impulso, decidiu dar um
fim nisso, sem se preocupar com as consequências do seu “impensado” gesto de
amizade e dedicação. Tampouco o fiel escudeiro imaginava que o seu chefe seria
capaz de tamanha teatralidade: “Mais uma
vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se
desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e
não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha
ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e
principalmente os humildes. (...) E aos que pensam que me derrotaram, respondo
com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna.
Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu
sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu
resgate. Saio da vida para entrar na História.”
Que os presidentes da república, diante de um
escândalo (federal, como se dizia antigamente!) envolvendo parentes próximos,
partidários, conchavados etc, dizem saber de absolutamente nada, não é
novidade. Afinal, para eles, é preferível ficar olhando o umbigo do que o
espelho. Se bem que no caso de Jânio
Quadros (1917-1992), que governou o Brasil por apenas seis meses (31.01.1961 a 25.08.1961), quem nunca soube “quem” ou “o quê” eram as tais
“forças ocultas” (na verdade: “forças terríveis”) que o “obrigaram” a
renunciar, foi (ainda é) o povo: "Fui
vencido pela reação e assim deixo o governo. (...) Desejei um Brasil para os
brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que
subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou de
indivíduos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis
levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de
colaboração./ Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora
quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não
manteria a própria paz pública.”
No palco da demagogia, dominar a política do
fraseado é fundamental para se perpetuar no poder. Ter acesso às coxias
(bastidores), então, não tem preço! Getúlio,
drama-thriller inspirado em fatos e dirigido por João Jardim, trata apenas dos últimos 19 dias da vida de Vargas. Ou
seja, vai da morte de Ruben Vaz, em 5 de agosto de 1954, à morte de Getúlio
Vargas, em 24 de agosto de 1954. E entre uma morte e outra, a pergunta que
nunca calou, porque nunca houve uma resposta satisfatória: - Quem realmente articulou o atentado a Carlos Lacerda?
Portanto, quem espera ver uma biografia do velho
ditador, do velho presidente, do velho “cantado” nas marchinhas de carnaval...,
é melhor buscar em bibliotecas e livrarias a farta bibliografia sobre os
diversos períodos da vida da raposa populista (que fez escola) “pai dos pobres”.
Excetuando um mea-culpa (?) em off e algumas “insinuações” (meu passado
não me condena) diluídas em dois ou três diálogos, o roteiro de George Moura, não toca no passado do demagogo
presidente GV. O assunto em pauta é a “investigação” do atentado na Rua
Tonelero, em Copacabana, que, além da morte do militar da aeronáutica, teria ferido
Carlos Lacerda com um tiro no pé.
A trama praticamente transcorre nas dependências
do belo Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, sede do Governo Federal e
residência presidencial, onde o Getúlio,
ladeado, ou melhor, assessorado pela filha Alzira
Vargas (Drica Moraes, roubando
cenas) aguarda a conclusão do caso Tonelero, cujo desdobramento envolve sua
família. Nesses dias tensos, em que a virulência lacerdista parece não ter
limites, entre reuniões ministeriais e pesadelos premonitórios, Vargas rascunha a sua famosa
carta-testamento..., talvez premeditando (?) o suicídio.
João Jardim disse ter “escolhido os 19 últimos dias da vida do
Getúlio por ser um momento único na história do Brasil, em emoção e conteúdo.
São dias velozes e com acontecimentos que se reproduzem até hoje na realidade
do país, o que torna o filme contemporâneo.” Para George Moura, “Getúlio não é um filme histórico no sentido
estrito, é um filme sobre as mazelas do poder que estão presentes até hoje no
Brasil e no mundo. É um thriller político. Nossa intenção não foi condenar ou
absolver Getúlio por seus atos, mas sim apresentá-los sem a máscara do discurso
oficial.
Getúlio
(Brasil, 2014) é um filme para os mais ou menos iniciados em GV. Ou seja, para
quem sabe que bem antes do famigerado atentado a Carlos Lacerda, O Corvo da Tribuna (da Imprensa), o
estopim já estava aceso e era só uma questão de tempo para o epílogo
governamental. 1954 começou “tenso” para o governo, com a imprensa (é claro!)
repercutindo as mazelas do poder; revoltantes casos de impunidade (entre eles o
assassinato do jornalista Nestor Moreira) - que ainda hoje continua tal e qual;
a crescente repressão aos opositores etc..., e então a controvérsia da Rua
Tonelero.
O que de fato aconteceu e quem de fato estava
envolvido, talvez algum dia se saiba. Por enquanto, o que há são 60 anos de
versões e achismos de protagonistas e coadjuvantes sobre os fatos daqueles fatídicos
dias 5 e 24 de Agosto de 1954. Há, sem dúvida, alguma verdade sobre os eventos nas
publicações que serviram de fonte de pesquisa para Jardim, mas não creio que a
verdade (verdadeira) esteja ali. Diante de tantas emoções e partidarismo, me
parece ingenuidade acreditar em imparcialidade.
Getúlio traz, em
uma versão sóbria (até demais) e, por vezes, sombria, fragmentos dos últimos
dias (definitivos) de Getúlio, que já vinha morrendo aos poucos, em família e
politicamente. Digo fragmentos porque, de repente, a “trama Tonelero” vai
ganhando cacos, cenas vagas, histórias paralelas (família x poder), personagens
que entram mudos e saem calados, comprometendo a narrativa que, apesar do bom
ritmo, perde a consistência de thriller político para a insistência de drama de
um político.
Fazendo jus ao título, o enredo parece dar mais
ênfase aos últimos dias do presidente caudilho, praticamente isolado e acuado
no Catete, do que à investigação do atentado. Será porque o drama (pessoal) tinha
um fim e o thriller (coletivo) continua em aberto? É meio estranho ver Getúlio,
o déspota, pousando de bom moço, digo, velhinho. Todavia, todo morto vira gente
boa. O trio protagonista, com destaque para Drica Moraes, está bem. Tony Ramos
interpreta (sem sotaque gaúcho), não imita Getúlio Vargas. Excetuando a pança (hitchcockiana),
ele pouco lembra o político de São Borja - RS.
Por vezes didático e por vezes brilhante, Getúlio desperta interesse, mas não
arrebata. Talvez porque a linha para costurar fatos e dar coesão à narrativa
está sempre quebrando. Há que se destacar a fotografia de Walter Carvalho e o aproveitamento do cenário real (na preciosa
reconstituição de época) que é o lindo Palácio do Catete. A trilha sonora é intrusiva,
decepciona na sua grandiloquência, como a maioria das trilhas que os cineastas
adoram usar nas horas mais impróprias (preste atenção como uma musica apelativa
consegue destruir a forte sequência em que Alzira
Vargas ouve um tiro e atônita se dirige ao quarto do pai).
Considerando que os fatos trazidos a lume não são
novidade, mas que podem ajudar as novas gerações (que se interessarem pelo
tema) e os adultos distraídos a compreenderem melhor os rumos que a política
tomou de 1954 até hoje, vale dar um olhada. Em ano eleitoral, nunca é demais considerar
a herança que o passado nos legou.
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