A certa altura da sua história (evolutiva) o
homem conceitualizou o Divino nas Coisas da Natureza e a Ciência na Natureza das
Coisas. Desde então o embate entre a Religião e a Ciência é contínuo..., e a Fé
é um exercício de dois lumes a serviço do abstrato e do concreto.
As
Aventuras de Pi, que não é um filme de aventuras, mas de
reflexão sobre a essência de Deus, do Homem, do Animal e da Ciência, e por isso
seria mais correto manter o título original A Vida de Pi (Life of Pi,
EUA, 2012), é um momento raro no cinema, neste finalzinho de 2012 de bobagens
homéricas nacionais e norte-americanas. Dirigido pelo genial Ang Lee, para quem não existe esse
nhenhenhém de “infilmável”, As Aventura
de Pi é uma das mais impressionantes viagens sensoriais (em qualquer “D”)
já feitas no cinema. É impossível ao espectador ficar alheio à fascinante narrativa
e ou aos incomparáveis efeitos especiais 3D (vale cada centavo!). Nunca o uso da
tecnologia foi tão pertinente a serviço da sétima arte.
As
Aventuras de Pi é baseado no premiado livro homônimo de Yann
Martel, lançado em 2001. O autor se inspirou em uma passagem do livro Max e os Felinos, de Moacyr Scliar
(1937 - 2011), publicado em 1981. As duas histórias (pelas sinopses) têm pontos
em comum e ou divergentes em suas alegorias, envolvendo jovens perdidos em alto
mar e na companhia ocasional um felino (jaguar e tigre). Na web há farto material sobre este caso
que deu água pra muita praia. No YouTube
pode ser visto um breve vídeo-depoimento de
Moacyr Scliar, e no Portal Baixa Cultura
pode ser lido, na íntegra, o texto-depoimento do
escritor brasileiro sobre a polêmica apropriação da ideia central de seu livro.
O fato de, a princípio, ter sido negada e depois confirmada, por Martel, a
inspiração para a sua obra (que também não li), não tira o mérito da adaptação
de David Magee e da belíssima realização de Lee.
O drama começa com o tranquilo Pi Patel (Irrfan Khan), já adulto e vivendo em Montreal, no Canadá, contando emocionado
a sua fantástica história a um incrédulo escritor (Rafe Spall). O seu relato é curiosíssimo e a narrativa que vai se
desenhando na tela é de encher os olhos, tirar o fôlego, provocar palpitações,
tamanha é a sua beleza (também) visual. Quando nos damos conta do envolvimento
com a divertida explicação lógica do seu estranho nome (Pi), na idílica infância (Ayush
Tandon), e com os seus profundos questionamentos sobre religião e ciência,
na inquieta adolescência (Suraj Sharma),
felizmente é tarde demais. Cativos, só nos resta acompanhar extasiados a sua
saga de náufrago, dividindo (também) o mar e o barco com uma zebra, uma hiena,
um orangotango e um tigre conhecido por Richard
Parker.
Pi
Patel é um personagem tão atraente quanto aqueles que povoam as
páginas da rica literatura indiana. A sua matemática de sobrevivência e
observações sobre Deus (onisciente, onipresente, onipotente), a quem busca
compreender desde criança, no hinduísmo, no catolicismo e no islamismo, é comovente.
Talvez seja mais fácil perceber no outro, do que em nós mesmos (solitários na
mesma cobrança e vítimas da idiossincrasia capital), que, aquilo e ou aquele que
não se tange nos constrange. Ou como diz este belo poema curto de Helena Kolody
(1912 - 2004), Viagem Infinita: Estou
sempre em viagem./ O mundo é a
paisagem/ que me atinge/ de passagem.
A intensa reflexão de Pi sobre a vida (em terra ou em mar) e a que nos serve a religião e
ou a ciência quando a morte bate à porta, nos remete ao A Árvore da Vida
(2011), de Terrence Malick, jogando luz em alguns “pontos obscuros” para o
grande público. Não sei quanto o roteiro de Magee é fiel ao livro de Martel,
mas Ang Lee deixa claro que está fazendo um filme e não um tratado, porém, sem
fugir à discussão filosófica do seu desesperado personagem, sempre rápido na
ironia que dispensa até a um kit de sobrevivência. Daí que, se o espiritualista
vai por água abaixo o espirituoso assume o leme.
Pi
Patel (personagem de si mesmo) e Lee (personificador do outro) são
ilusionistas de belas (e às vezes trágicas) palavras e belas (e às vezes
trágicas) imagens. Ambos contam e recontam a história do náufrago que
sobreviveu por 227 dias em alto mar. Há um sabor agridoce na narrativa de
ambos. Quando oralidade e cinema se confundem, palavras e imagens não se bastam
na respiração suspensa do espectador que, ao final, deverá decifrar o que a luz
esconde e ou a sombra desvela em cada relato.
Dizem que nem tudo o que brilha é ouro e ou que
o substantivo é mais importante que o verbo e ou que o cinema é ilusão a 24
quadros (Peter Jackson, em O
Hobbit, está apostando em 48)... Pi diz que “A fome pode mudar
tudo o que você sabia sobre si mesmo.” Se, em sua desconcertante narrativa,
Ang Lee nos conduz além de qualquer dogma cinematográfico, o seu fotógrafo Claudio Miranda, confundindo os nossos
sentidos, deixa claro que na arte não existe ponto final.
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