sábado, 15 de dezembro de 2012

Crítica: As Aventuras de Pi



A certa altura da sua história (evolutiva) o homem conceitualizou o Divino nas Coisas da Natureza e a Ciência na Natureza das Coisas. Desde então o embate entre a Religião e a Ciência é contínuo..., e a Fé é um exercício de dois lumes a serviço do abstrato e do concreto.

As Aventuras de Pi, que não é um filme de aventuras, mas de reflexão sobre a essência de Deus, do Homem, do Animal e da Ciência, e por isso seria mais correto manter o título original A Vida de Pi (Life of Pi, EUA, 2012), é um momento raro no cinema, neste finalzinho de 2012 de bobagens homéricas nacionais e norte-americanas. Dirigido pelo genial Ang Lee, para quem não existe esse nhenhenhém de “infilmável”, As Aventura de Pi é uma das mais impressionantes viagens sensoriais (em qualquer “D”) já feitas no cinema. É impossível ao espectador ficar alheio à fascinante narrativa e ou aos incomparáveis efeitos especiais 3D (vale cada centavo!). Nunca o uso da tecnologia foi tão pertinente a serviço da sétima arte.


As Aventuras de Pi é baseado no premiado livro homônimo de Yann Martel, lançado em 2001. O autor se inspirou em uma passagem do livro Max e os Felinos, de Moacyr Scliar (1937 - 2011), publicado em 1981. As duas histórias (pelas sinopses) têm pontos em comum e ou divergentes em suas alegorias, envolvendo jovens perdidos em alto mar e na companhia ocasional um felino (jaguar e tigre). Na web há farto material sobre este caso que deu água pra muita praia. No YouTube pode ser visto um breve vídeo-depoimento de Moacyr Scliar, e no Portal Baixa Cultura pode ser lido, na íntegra, o texto-depoimento do escritor brasileiro sobre a polêmica apropriação da ideia central de seu livro. O fato de, a princípio, ter sido negada e depois confirmada, por Martel, a inspiração para a sua obra (que também não li), não tira o mérito da adaptação de David Magee e da belíssima realização de Lee.

O drama começa com o tranquilo Pi Patel (Irrfan Khan), já adulto e vivendo em Montreal, no Canadá, contando emocionado a sua fantástica história a um incrédulo escritor (Rafe Spall). O seu relato é curiosíssimo e a narrativa que vai se desenhando na tela é de encher os olhos, tirar o fôlego, provocar palpitações, tamanha é a sua beleza (também) visual. Quando nos damos conta do envolvimento com a divertida explicação lógica do seu estranho nome (Pi), na idílica infância (Ayush Tandon), e com os seus profundos questionamentos sobre religião e ciência, na inquieta adolescência (Suraj Sharma), felizmente é tarde demais. Cativos, só nos resta acompanhar extasiados a sua saga de náufrago, dividindo (também) o mar e o barco com uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre conhecido por Richard Parker.


Pi Patel é um personagem tão atraente quanto aqueles que povoam as páginas da rica literatura indiana. A sua matemática de sobrevivência e observações sobre Deus (onisciente, onipresente, onipotente), a quem busca compreender desde criança, no hinduísmo, no catolicismo e no islamismo, é comovente. Talvez seja mais fácil perceber no outro, do que em nós mesmos (solitários na mesma cobrança e vítimas da idiossincrasia capital), que, aquilo e ou aquele que não se tange nos constrange. Ou como diz este belo poema curto de Helena Kolody (1912 - 2004), Viagem Infinita: Estou sempre em viagem./ O mundo é a paisagem/ que me atinge/ de passagem.

A intensa reflexão de Pi sobre a vida (em terra ou em mar) e a que nos serve a religião e ou a ciência quando a morte bate à porta, nos remete ao A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, jogando luz em alguns “pontos obscuros” para o grande público. Não sei quanto o roteiro de Magee é fiel ao livro de Martel, mas Ang Lee deixa claro que está fazendo um filme e não um tratado, porém, sem fugir à discussão filosófica do seu desesperado personagem, sempre rápido na ironia que dispensa até a um kit de sobrevivência. Daí que, se o espiritualista vai por água abaixo o espirituoso assume o leme.


Pi Patel (personagem de si mesmo) e Lee (personificador do outro) são ilusionistas de belas (e às vezes trágicas) palavras e belas (e às vezes trágicas) imagens. Ambos contam e recontam a história do náufrago que sobreviveu por 227 dias em alto mar. Há um sabor agridoce na narrativa de ambos. Quando oralidade e cinema se confundem, palavras e imagens não se bastam na respiração suspensa do espectador que, ao final, deverá decifrar o que a luz esconde e ou a sombra desvela em cada relato.

Dizem que nem tudo o que brilha é ouro e ou que o substantivo é mais importante que o verbo e ou que o cinema é ilusão a 24 quadros (Peter Jackson, em O Hobbit, está apostando em 48)... Pi diz que “A fome pode mudar tudo o que você sabia sobre si mesmo.” Se, em sua desconcertante narrativa, Ang Lee nos conduz além de qualquer dogma cinematográfico, o seu fotógrafo Claudio Miranda, confundindo os nossos sentidos, deixa claro que na arte não existe ponto final.

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