Cafarnaum
por Joba Tridente
Cinema é um palco aberto para todo tipo de sensação a
ser compartilhada com o cinéfilo ou com o mero espectador. Em sua branca tela
imprime-se da mais lúdica à mais incômoda história fictícia ou inspirada em
fatos. Iluminada ou sombria, cada uma tem seu público fiel. O que não quer
dizer que seja uma norma em um tempo em que a sétima arte anda um tanto volúvel
ou fugaz em busca de alvos lucrativos.
O ganhador da Palma
de Ouro, no Festival de Cannes 2018, Cafarnaum
(کفرناحوم), cujo título
está relacionado mais ao caos (miséria) que à cidade bíblica judaico-cristã, é
o mais novo filme da cineasta libanesa Nadine
Labaki..., diretora dos também premiados Caramelo (2007) e E Agora,
Aonde Vamos? (2011), bem mais leves que este, em que Labaki dá uma guinada
de 180º. Sai da zona de conforto da saborosa comédia de costumes para o
indigesto drama social.
Para quem gosta de carregar pedra enquanto descansa, Cafarnaum dá um refresco de 1 tonelada
no lombo..., ou um murro, sem culpa, na boca do estômago cheio. Fica a
critério! Com licença a Schopenhauer, o drama documental da vida como ela é
quando se tem nada na periferia de Beirute, traz em si todas as dores possíveis
e inimagináveis do mundo vivenciadas por um garoto de (possivelmente) doze anos,
Zain (Zain al Rafeea, carismático), que não tem registro de nascimento e
os pais negligentes (Kawthar al Haddad
e Fadi Kamel Youssef), que ele quer
processar (por lhe darem a vida), não
sabem em que ano nasceu. Ou seja, para todos os efeitos de comiseração (ou de
resiliência!), Zain é um miserável
visível nas ruas, mas invisível no censo demográfico.
Personagem forte, num misto de Oliver Twist (1837), de Charles Dickens (1812-1870), com Pixote (1980) de Hector Babenco
(1946-2016), o franzino (mas bravio!) Zain
leva uma vida desregrada..., típica de qualquer “menino de rua” da periferia de
qualquer cidade grande (principalmente daquelas que se submetem a dogmas
machofalocratas sociais e religiosos)..., e faz todo tipo de trabalho para
ajudar nas despesas de casa. A sua maior preocupação é com a inocente irmã Sahar (a bela Haita “Cedra” Izzam), de onze anos, que, logo após a primeira
menstruação, poderá ser oferecida (mesmo criança) em casamento a um homem
adulto, por alguma compensação. O que faz o indignado garoto (maduro demais
para a sua idade) deixar a casa dos pais irresponsáveis e, ao perambular pela
região, conhecer a imigrante ilegal etíope Rahil
(Yordanis Shiferaw) e passar a
cuidar do adorável Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), o filho
de um ano dela. Meses depois, obrigado a voltar ao cortiço onde mora sua paupérrima
família, toma ciência de um evento absurdo e acaba cometendo um grave atentado...
Toda a trama se desenvolve em flashbacks, a partir do “prólogo”, com o início do julgamento de Zain, pelo atentado (sem dizer a quem) e
do processo dele contra os pais. Ainda que apresente sequências de beleza
felliniana, como aquela (nonsense) que
começa com um passageiro fantasiado de homem-barata
e termina no carrossel do parque de diversões, onde ele dorme e faz um gracejo
lindo e impagável com uma alegoria feminina que compõe o brinquedo..., Cafarnaum é angustiante! É um tormento
assistir ao seu protagonista (endurecido pelas circunstâncias) tentando seguir
em busca de uma vida melhor. O infortúnio está ao seu redor. O seu sofrimento
parece não ter fim...
Pode até haver urgência na temática global, mas são
tantos os assuntos tratados ou denunciados neste panorama (pedofilia, tráfico
de drogas e de pessoas, prostituição, abandono de incapaz, exploração de menor,
imigração ilegal, extorsão, menstruação, furto, controle de natalidade, educação...),
sob o ponto de vista de uma criança, que pode acabar anestesiando o público
impotente diante das mazelas sem fim que escapam da Caixa de Pandora libanesa. Muitos o verão como excessivo na
exposição (sem aprofundamento adequado) de questões socioeconômicas pertinentes
e até cansativo na lamúria. Outros, talvez o considerem catártico!
Enfim..., atento à expressividade do elenco de atores
não-profissionais, mas de grande experiência na vida que levam e espelham na
tela, cujo roteiro e diálogos foram adaptados às suas improvisações; observando
a fotografia realista de Christopher Aoun que, na altura dos olhos da garotada
ou de cima (na altura dos olhos dos anjos?), nos dá a noção do labirinto
sombrio dos necessitados, que se amontoam nas ruas, favelas, prisões e
tribunais libaneses; abominando a dispensável e melodramática trilha sonora invasiva;
certo de que a relevância do tema (ainda que soe: de mim pra mim mesmo) provavelmente vai emocionar muita gente, mas
que não deve resultar em atitudes pessoais fora da sala de cinema..., Cafarnaum, corroteirizado por Labaki e
Jihad Hojeily, é de um sensibilidade tremenda. Traz momentos inspirados (onde,
em meio a amargura, é possível encontrar estrofes de doce poesia infantil),
texto afiado e uma mensagem (subliminar?) final que deve agradar tanto quanto incomodar
os espectadores..., depende de como cada um irá assimilar o recado. Certeza mesmo, é que público nenhum ficará
indiferente ao drama do pequeno grande Zain
(o sonhador!)...
*Joba Tridente: O
primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros
vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm,
realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e
coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder,
2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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