sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Crítica: Corpo e Alma


CORPO E ALMA
por Joba Tridente*

As histórias românticas mais simples nem sempre são as mais fáceis de se contar e ou de se assistir no cinema, principalmente se intensas e estranhas ao cotidiano. Assim é o belo e insólito drama de amor e dor Corpo e Alma, escrito e dirigido pela cineasta húngara Ildikó Enyedi, ganhador do Urso de Ouro, no 67º Festival Internacional de Cinema de Berlim, onde mereceu também o Prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI) e o Prêmio do Júri Ecumênico. Alexandra Borbély, que interpreta Mária, recebeu o prêmio de melhor atriz europeia no European Film Awards

Assim como algumas produções que conseguem chegar ao sul do Equador, vindas do Leste Europeu, Corpo e Alma (Testről és lélekről, Hungria, 2017) exige uma breve “climatização” do espectador acostumado às histórias mais palatáveis norte-americanas, inglesas, francesas, italianas, espanholas (comuns por aqui)..., seja pela austeridade, ritmo e ou idiossincrasia (cultural) na abordagem de temas de caráter universal. Prato cheio, com direito a sobremesa, para psicólogos e psiquiatras, a narrativa acompanha a curiosa tentativa de relacionamento social e amoroso entre Mária (Alexandra Borbély), a metódica inspetora de qualidade, e Endre (Géza Morcsányi), o diretor financeiro de um matadouro de gado. Ambos solitários e traumatizados.


Mária é rígida, memória privilegiada, segue as normas ao pé da letra..., e apresenta sintomas de Síndrome de Asperger e TOC.  Endre é um sujeito de meia idade, acostumado à rotina laboral, introspectivo, guarda frustrações amorosas..., e tem o braço esquerdo paralisado. Os problemas físico e emocional deles são apenas detalhes em uma fascinante trama de amor doentio que passa longe da pieguice e do novelesco melodramático costumaz. O que motiva o enredo de realismo mágico e vai alinhavando o espectador à narrativa é o magnífico sonho (com um casal de cervos) que têm em comum e só o descobrem a partir de um incidente no matadouro, envolvendo todos os funcionários. A busca pelo porquê do estranho sonho em comum, pontuada por um humor nervoso ou nonsense, vai levá-los por caminhos inusitados da razão.

Brincadeira do destino ou mero fruto do acaso cortando fundo a carne humana para atingir o coração? Com suas ricas metáforas (incômodas e pertinentes ao contexto), relacionando vida e morte, amor e dor, na lida diária em um matadouro (onde nenhum gado que vai morrer – não em função do filme – saúda o seu assassino) e nas noites vazias em um apartamento, Corpo e Alma é uma experiência cinematográfica singular com material suficiente para transformar o olhar do público viciado em “normalidades” ao estilo hollywoodiano. Aqui, cada cabeça uma sentença não é mera força de expressão. Tampouco é a cor e ou a densidade do sangue que nos diferem dos outros animais...


Corpo e Alma é um filme adulto, de beleza e profundidade ímpares, que nos faz pensar sobre os “limites” do corpo e da mente ao desvelar o atalho do labirinto que nos leva à afeição e ou à rejeição humana. Não é um filme fácil, em seu primeiro ato, onde se rivalizam as belas imagens do bucólico sonho com as dolorosas imagens do matadouro (que pode embrulhar o estômago de vegetarianos e veganos). Mas, passado este, digamos, longo prólogo, o roteiro segue bem mais ameno, ao acompanhar o casal protagonista fazendo das tripas coração para vencer seus medos e conseguir se comunicar... Não é possível ir além destas informações, para não cometer spoiler e tirar o impacto da trama.

Embora o script não dependa (ufa!) de trilha (quase ausente) sonora, há uma sequência antológica (rumo ao epílogo) onde a comovente canção What He Wrote, da cantora e compositora (indie folk) inglesa Laura Marling é inserida com precisão cirúrgica. Entre as ótimas performances do elenco, dando credibilidade ao drama, o que sobressai, sem dúvida, é a atuação exemplar de Alexandra Borbély, Géza Morcsányi e Réka Tenki, na pele da psiquiatra Klára.


Com a excelente direção de Ildikó Enyedi, dando forma ao seu inteligente roteiro, que insinua mas não entrega a próxima cena, mantendo o mistério sobre o futuro amoroso de Mária e Endre até o epílogo desconcertante, Corpo e Alma..., que explora muito bem os longos silêncios e os curtos diálogos, apostando nas imersivas imagens (atraentes ou repulsivas) de Máté Herbai..., é recomendado ao espectador que prefere pensar fora da caixa, a dar com a cabeça na tela do cinema comum...


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...