CORPO E ALMA
por Joba
Tridente*
As histórias românticas mais simples nem sempre são
as mais fáceis de se contar e ou de se assistir no cinema, principalmente se
intensas e estranhas ao cotidiano. Assim é o belo e insólito drama de amor e
dor Corpo e Alma, escrito e dirigido
pela cineasta húngara Ildikó Enyedi,
ganhador do Urso de Ouro, no 67º
Festival Internacional de Cinema de Berlim, onde mereceu também o Prêmio da Federação Internacional de Críticos
de Cinema (FIPRESCI) e o Prêmio
do Júri Ecumênico. Alexandra Borbély,
que interpreta Mária, recebeu o
prêmio de melhor atriz europeia no European
Film Awards.
Assim como algumas produções que conseguem chegar ao
sul do Equador, vindas do Leste Europeu, Corpo
e Alma (Testről és lélekről,
Hungria, 2017) exige uma breve “climatização” do espectador acostumado às
histórias mais palatáveis norte-americanas, inglesas, francesas, italianas,
espanholas (comuns por aqui)..., seja pela austeridade, ritmo e ou
idiossincrasia (cultural) na abordagem de temas de caráter universal. Prato
cheio, com direito a sobremesa, para psicólogos e psiquiatras, a narrativa acompanha
a curiosa tentativa de relacionamento social e amoroso entre Mária (Alexandra Borbély), a metódica inspetora de qualidade, e Endre (Géza Morcsányi), o diretor financeiro de um matadouro de gado.
Ambos solitários e traumatizados.
Mária é
rígida, memória privilegiada, segue as normas ao pé da letra..., e
apresenta sintomas de Síndrome de Asperger e TOC. Endre é um sujeito de meia idade,
acostumado à rotina laboral, introspectivo, guarda frustrações amorosas..., e
tem o braço esquerdo paralisado. Os problemas físico e emocional deles são
apenas detalhes em uma fascinante trama de amor doentio que passa longe da
pieguice e do novelesco melodramático costumaz. O que motiva o enredo de
realismo mágico e vai alinhavando o espectador à narrativa é o magnífico sonho (com
um casal de cervos) que têm em comum e só o descobrem a partir de um incidente
no matadouro, envolvendo todos os funcionários. A busca pelo porquê do estranho
sonho em comum, pontuada por um humor nervoso ou nonsense, vai levá-los por
caminhos inusitados da razão.
Brincadeira
do destino ou mero fruto do acaso cortando fundo a carne humana para atingir o
coração? Com suas ricas metáforas (incômodas e pertinentes ao contexto),
relacionando vida e morte, amor e dor, na lida diária em um matadouro (onde
nenhum gado que vai morrer – não em
função do filme – saúda o seu assassino) e nas noites vazias em um
apartamento, Corpo e Alma é uma
experiência cinematográfica singular com material suficiente para transformar o
olhar do público viciado em “normalidades” ao estilo hollywoodiano. Aqui, cada cabeça uma sentença não é mera força
de expressão. Tampouco é a cor e ou a densidade do sangue que nos diferem dos
outros animais...
Corpo e Alma é um filme adulto, de beleza e
profundidade ímpares, que nos faz pensar sobre os “limites” do corpo e
da mente ao desvelar o atalho do labirinto que nos leva à afeição e ou à rejeição
humana. Não é um filme fácil, em seu primeiro ato, onde se rivalizam as belas
imagens do bucólico sonho com as dolorosas imagens do matadouro (que pode
embrulhar o estômago de vegetarianos e veganos). Mas, passado este, digamos,
longo prólogo, o roteiro segue bem mais ameno, ao acompanhar o casal
protagonista fazendo das tripas coração
para vencer seus medos e conseguir se comunicar... Não é possível ir além destas
informações, para não cometer spoiler
e tirar o impacto da trama.
Embora o script
não dependa (ufa!) de trilha (quase ausente) sonora, há uma sequência
antológica (rumo ao epílogo) onde a comovente canção What He Wrote, da cantora e compositora (indie folk) inglesa Laura
Marling é inserida com precisão cirúrgica. Entre as ótimas performances do
elenco, dando credibilidade ao drama, o que sobressai, sem dúvida, é a atuação exemplar
de Alexandra Borbély, Géza Morcsányi e Réka
Tenki, na pele da psiquiatra Klára.
Com a excelente direção de Ildikó Enyedi, dando forma
ao seu inteligente roteiro, que insinua mas não entrega a próxima cena, mantendo
o mistério sobre o futuro amoroso de Mária
e Endre até o epílogo desconcertante,
Corpo e Alma..., que explora muito
bem os longos silêncios e os curtos diálogos, apostando nas imersivas imagens (atraentes
ou repulsivas) de Máté Herbai..., é recomendado ao espectador que prefere pensar fora da caixa, a dar com a
cabeça na tela do cinema comum...
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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