A vigarice é assunto comum em pelo menos dois
filmes que concorrem ao Oscar: O
Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, e Trapaça, de David O. Russell.
Duas leituras bem diferenciadas do mercado de finanças. A de Scorsese,
espetaculosa por natureza de ego pra encher linguiça. A de Russel, cativante
por natureza de roteiro primoroso.
Trapaça (American Hustle, EUA, 2013) é daquelas
produções que te arrebatam (e não te largam) de crédito (vintage) a crédito. Logo
de início o espectador é alertado de que verá uma ficção, sem compromisso com
os fatos que a inspiraram e, portanto, nem tudo aconteceu daquela forma. A
história se passa na virada da década 1970, nos EUA, e é livremente inspirada
no Escândalo Abscam, que derrubou
vários políticos norte-americanos envolvidos com tráfico e corrupção pública. A
conturbada operação foi orquestrada pelo FBI, com a “colaboração” de um
vigarista condenado e de um agente disfarçado de árabe.
Num clima deliciosamente pop-noir (setentista),
onde o que menos importa é a veracidade dos fatos, os roteiristas O. Russel e Eric
Warren Singer fuçam os bastidores da famosa Operação
Abscam para desvelar, romanticamente, os seus principais personagens, em
performances brilhantes do elenco: Irving
Rosenfeld (Christian Bale) é
dono de lavanderias e vigarista nas horas vagas, um apreciador do jazz de Duke
Ellington, assim como sua amante e parceira de golpes Sydney Prosser (Amy Adams)
que, com elegância britânica de uma “Lady
Edith”, pensa grande, mas não o suficiente para livrar o casal das mãos de Richie DiMaso (Bradley Cooper), um ansioso agente do FBI que, atrás de promoção,
usa os trapaceiros numa investigação e coloca em risco a popularidade
administrativa do apaixonante Carmine
Polito (Jeremy Renner), prefeito
de New Jersey preocupado apenas com o bem da sua comunidade. Na periferia dos
acontecimentos está Rosalyn Rosenfeld
(Jennifer Lawrence), a doidivana
mulher de Irving, que, de tão ingênua
em sua loirice, nem sabe que pode por toda a operação a perder.
Corrupção pode ser um assunto “espinhoso”, mas
nem por isso precisa ser chato ou caricato (como no fantasioso O Lobo de Wall Street). A excelência do
enredo, diálogos inteligentes, pincelados com boas doses de humor e romance (estilo
novelão latino) e um elenco no seu melhor momento, fazem valer cada minuto e
cada centavo de Trapaça. O apuro na
reconstituição de época surpreende. A sensação é de se estar vendo não a um
filme de época, mas da época, na cor e sabor dos anos 1970/80. Figurino,
maquiagem (bobes!), música ambiente..., são um espetáculo à parte. Disse música
ambiente porque em momento algum Russel se aproveita de odiosa trilha clichê
para induzir emoções. A música, quando aparece em cena, é apenas como raro
complemento à ação, como, por exemplo, na sequência em que rola a canção
bondiana Live and Let Die, de Paul e
Linda McCartney: impagável. Também não tem preço a dança de DiMaso (Cooper) e Prosser (Adams), na 54 - só quem frequentou boates/discotecas naquele
tempo vai entender (o ridículo?). Agora, se é pra antologia, a cena de Irving (Bale) montando o seu cabelo não
tem pra ninguém.
Trapaça é um
filme-armadilha que enreda tanto os seus fantásticos personagens - vítimas da própria
trapaça que criaram - quanto o espectador, embevecido com suas histórias (de altos
e baixos) em sequências memoráveis. Há sempre uma levando à outra ainda melhor...,
culpa do timing (cômico, romântico, dramático)
do elenco numa narrativa muito bem amarrada e onde o crime e o castigo é apenas
um detalhe. Nas reviravoltas do roteiro, Lawrence, com sua desleixada Rosalyn, rouba muitas cenas, mas, creio
que as mais tocantes, são as de Renner na pele do sonhador prefeito Carmine, cuja ambição de dar uma vida
melhor aos cidadãos do seu estado acaba virando um pesadelo. É impossível não
se emocionar, no epílogo, diante da frustração de Carmine e o remorso de Irving.
David O. Russell vem se aprimorando na arte de transformar
histórias pequenas (O Vencedor, O Lado Bom da Vida) em grandes pérolas. Trapaça é um colar de pérolas multicoloridas
que combina com qualquer roupa, já que é apenas uma questão de tempo (ou moda!)
para que o chique vire brega e vice-versa. Diversão, na medida, para quem gosta
de pensar durante e depois da sessão de cinema.
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