quinta-feira, 22 de julho de 2021

Crítica: A arte da felicidade

 
Cine Clube Italiano

A ARTE DA FELICIDADE

23 a 29 de julho de 2021

online e gratuitamente

(links: texto em laranja) 

Acostumado com uma “lógica de mercado” que monetiza o entretenimento animação, como se “coisa” exclusiva de criança, o grande público acaba deixando de apreciar o brilho de grandes pérolas do desenho animado (asiático, europeu, latino, africano) para adultos, nas telas de cinema (e mesmo nas telinhas de streaming). Quem vencer o preconceito e tiver interesse encontra ótimas listagens de surpreendentes animações para adultos na internet, é só procurar nos melhores sites. Para mim, apaixonado pela sétima arte e que já assisti a centenas de animações (e filmes animados) de todo o mundo, é um deleite que não tem preço. É claro que o gosto é muito pessoal e listar apenas alguns filmes (sem comentá-los), de uma relação imensa, não faria sentido. 

Portanto, no momento, escrevo apenas sobre a produção que está mais próxima: A arte da felicidade (L'arte della felicità, Itália, 2013), do diretor Alessandro Rak..., que será exibido online e gratuitamente, entre os dias 23 e 29 de julho de 2021, para assinantes e não assinantes do streaming À LA CARTE, em parceria com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, em sua terceira edição do Cine Clube Italiano. O desenho animado recebeu, entre outros, o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante no London Raindance Film Festival 2013. 



A ARTE DA FELICIDADE

por Joba Tridente 

Roteirizado por Alessandro Rak, Nicola Barile, Paola Tortora e Luciano Stella, A arte da felicidade foi parcialmente inspirado na morte de Alfredo Stella, irmão de Luciano, a quem o filme é dedicado, e ao evento cultural napolitano A Arte da Felicidade, criado por Luciano (há 17 anos) para unir intelectuais de diversas áreas do pensamento criativo em torno de questões relacionadas à vida e à humanidade. 

Situada entre os dias 23 e 25 de dezembro, numa Nápoles à beira de um colapso sanitário e social, e sob chuva intermitente, a narrativa acompanha a rotina do obstinado taxista Sergio, de 43 anos, que dirige, por entre sacos de lixo espalhados pelas ruas, e conversa com seus passageiros (cantora/instrumentista; reciclador de lixo; viúva rica; tio excêntrico; radialista) em busca de respostas para as suas próprias frustrações. Sergio, que acumulava mágoa profunda, desde que seu irmão Alfredo, com quem formava promissora dupla musical (ele no piano e o irmão no violino), partiu para o Nepal, para tornar-se monge budista, está à beira de um ataque de nervos, com a notícia da morte dele. Sérgio acredita que a única parceria musical possível era com Alfredo..., e por isso não o perdoa pela traição e tão pouco se perdoa por sentir-se vitimizado por dez anos e não encontrar a tecla certa do tom da sua catarse. 

Batendo as duas mãos, uma na outra, temos um som;

qual é o som de uma mão somente? 


Nesses dias cinzentos, em que laços familiares foram quebrados, o refúgio de Sérgio é o taxi. O interior do seu carro (onde o rádio está sempre ligado numa emissora que apresenta o instigante programa esotérico especulativo A Arte da Felicidade) está tão bagunçado quanto a sua mente..., à deriva. A cada conversa com os passageiros, uma peça a mais, do seu disforme quebra-cabeça, é lançada ao léu. Porém, a dor arraigada no seu peito é tão profunda que, para expurgá-la, ele precisaria compreender o famoso koan atribuído ao mestre Hakuin Ekaku (1686-1769): Batendo as duas mãos, uma na outra, temos um som; qual é o som de uma mão somente? Mas, como atingir o âmago de quem perdeu a fé até em si mesmo? De quem acredita que o zen-budismo, que acolheu o seu amado irmão, é o culpado de todos os seus males? De quem não enxerga nada mais além do próprio umbigo? 


A arte da felicidade é um drama excepcional. Fala de espiritualidade e de materialismo, de liberdade e de egocentrismo, de vida e de morte (começamos a morrer ao nascer) com precisão e naturalidade e sem jamais recorrer aos artifícios piegas da autoajuda. Não é fácil falar de morte (física e espiritual) para adultos, mas, os autores de A arte da felicidade, conseguem tratar o assunto de maneira satisfatoriamente reflexiva (e jamais definitiva!)..., pois como filosofou Sócrates: Só sei que nada sei. Seu roteiro..., cujo prólogo-metáfora (ou narrativa paralela), em que um pequeno taxi, movido à corda, atravessa diversos cenários, iluminando ou preenchendo as lacunas da história narrada em facetas..., é consistente e enreda o espectador de tal forma em sua poética visceral, que é impossível tirar os olhos da tela, do princípio ao final surpreendentemente crível em sua pungência. 


Assim como o excelente enredo, com seus diálogos curiosos e afiados que, por vezes, deixa o espectador sem chão, também o visual de A arte da felicidade (que custou apenas 800.000 euros) impressiona pela qualidade artística que une várias técnicas (em 2D, 3D, animatronic, rotoscopia) e tendências da atual animação, dando à obra, inclusive, um efeito de Graphic Novel experimental. A competente equipe de animadores usa e abusa muito bem dos enquadramentos, reflexos, luminosidade, texturas, em função da narrativa e não por exibicionismo. A harmonia entre as pranchetas de cores e os traçados diversificados  é estranha..., mas fascina. As belas e comoventes sequências com o pequeno táxi sem rumo, por exemplo, praticamente um filme curto dentro de um filme longo, chama a atenção não apenas pela qualidade e originalidade na sua criação, mas pela importância (subliminar?) na trama. Estas sequências, que me deram uma boa rasteira, são as lembranças mais vívidas que tenho da animação! É um mergulho profundo na consciência e na memória do protagonista..., mas que pode passar despercebido e ou parecer insignificante aos espectadores menos atentos ao trânsito das ideias. 


Rica em simbolismos de fé e de mundanidade, A arte da felicidade, propicia leituras interessantes para se compreender a psique de Sergio (em constante estado de autocomiseração) que exibe, dependurado no retrovisor do taxi, um ornamento representando o Deus Ganesha (Intelecto e Sabedoria, Fortuna e Prosperidade) e no para-brisa, um outro representando a Deusa Kali (Criação e Preservação, Destruição e Salvação), mas sem se atentar para o significado de cada objeto. Para ele, meras lembranças enviadas da Índia pelo irmão Alfredo. Toda via das falas indiscretas, no entanto, eles não estão ali apenas para compor um cenário caótico (ôps!) para um personagem ensimesmado (ôps!) que também mantém atrelada à chave do carro uma norma que não cumpre. Para quem estiver com olhos e ouvidos bem abertos (para os inúmeros detalhes que pontuam a narrativa) perceberá a intrínseca relação dos objetos representando seres divinos com os passageiros mundanos e suas histórias reais..., e como tudo se conecta e desvela primorosamente a personalidade do frustrado ex-músico e aborrecido motorista de taxi. Mas, tudo depende da leitura de cada espectador. O que para um é: OH! Para outro é: AH! 


Enfim, com roteiro, direção e arte notáveis, ótima trilha sonora e conteúdo saboroso para muitos debates, A arte da felicidade é um filme inspirado e direcionado àquele público cansado de produções cinematográficas a cada dia mais games descartáveis. Não é um desenho animado criado para vender bonequinhos e tampouco para se assistir se empanturrando de pipoca e refri. Pois, um tema seleto, exige um público seleto que em momento algum será subestimado. Então, que o poeta Dante guie cada um conforme suas expectativas de caminho mais aprazível para se escapar da autocomiseração e dos destroços da iminente erupção (ou colisão) de dois vulcões... 

NOTA: As considerações acima são pessoais e, portanto, podem não refletir a opinião geral dos espectadores e cinéfilos de carteirinha. 


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.  


A arte da felicidade

bate-papo ao vivo 



Na quarta-feira, 28 de julho de 2021, às 18h30, acontece no canal do YouTube do À LA CARTE um bate-papo ao vivo, sobre o filme, com Rosana Urbes¹, diretora, roteirista, storyboarder e animadora e Léo Mendes², gerente de inteligência do Belas Artes Grupo. 

¹. Rosana Urbes é animadora, ilustradora e storyboard artist e trabalhou, por oito anos, no exterior, sendo seis deles nos Estúdio Disney, em filmes como Mulan; Tarzan e Lilo & Stitch. Hoje desenvolve filmes de animação, livros e oficinas em sua produtora  Planta Filmes, em São Paulo. Dirigiu e animou Guida filme de animação com mais de 70 prêmios nacionais e internacionais, entre eles Animamundi; Annecy e Festival de Havana. Está em fase de finalização do curta-metragem Safo, com apoio do BNDES, entre outros projetos. 

². Léo Mendes iniciou sua experiência cinematográfica como gerente e assistente de programação no extinto Cineclube Oscarito, em São Paulo, de 1989 a 1991, passando a trabalhar na distribuidora independente Pandora Filmes, ainda em 1991, onde permanece até hoje como consultor de aquisições internacionais. Paralelamente, atuou como programador da sala de cinema do Esporte Clube Banespa, de 2002 a 2003; em outubro de 2017, assinou a curadoria da Mostra Incuráveis, dedicada a filmes com temática LGBT no cinema Belas Artes; foi curador da exposição itinerante de cartazes cinematográficos intitulada Um Século de Cinema em Cartaz – De 1915 a 2015, que foi vista de 01 de agosto a 31 de outubro entre as estações Luz, Paulista e Fradique Coutinho do Metrô de São Paulo e atua como programador do Noitão Belas Artes desde 2004. 


Cine Clube Italiano


O Cine Clube italiano é uma programação realizada pelo streaming de filmes À La Carte e o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo. De maio a novembro de 2021 serão realizadas sete edições mensais que trarão filmes italianos recém-lançados e inéditos no circuito comercial brasileiro que serão seguidos de uma programação especial. Os filmes terão acesso gratuito por uma semana no À LA CARTE e as programações acontecerão no canal do YouTube do streaming. 

Para as próximas edições estão programados os filmes Gangue de Ladras/Brave Ragazze; O Último Prosecco/Finche Prosecco; O Grande Espírito/Il Grande Spirito e Duas Famílias/I Predatori. 


O Instituto Italiano de Cultura de São Paulo (ou Istituto Italiano di Cultura di San Paolo) é um órgão oficial do Governo Italiano. Foi fundado em 1950 e se dedica a promover a cultura e a língua italiana, além de enriquecer o panorama cultural em sua área de ação com iniciativas voltadas à cooperação ítalo-brasileira neste setor. Localizado em um histórico casarão no bairro de Higienópolis, o Instituto promove concertos, exposições, sessões de cinema, palestras e encontros, e possui uma biblioteca com mais de 23 mil títulos, a maioria em língua italiana, disponíveis para o público. O Instituto é também fonte de informações sobre o país, cursos de língua italiana ministrados na Itália e bolsas de estudo outorgadas pelo Governo Italiano. 

À LA CARTE é um streaming de filmes pensado para quem ama cinema de verdade. Seu catálogo, que já conta com cerca de 400 títulos, e inclui filmes de todos os cantos do mundo e de todas as épocas: contemporâneos, clássicos, cults, obras de grandes diretores, super  premiados e principalmente aqueles que merecem ser revistos e que tocam o coração dos cinéfilos. Além de pelo menos quatro novos filmes que entram semanalmente no catálogo, há também a possibilidade do aluguel unitário, que são os Super Lançamentos: um espaço para filmes que estreiam antes dos cinemas; simultâneos ao cinema; filmes inéditos no Brasil, entre outras modalidades. Outro diferencial são as mostras de cinema, recentemente o À LA CARTE trouxe especiais dedicados à cinematografia francesa, italiana, coreana, espanhola, britânica e suíça. O À LA CARTE foi criado no final de 2019 e integra o Belas Artes Grupo, que inclui também a Pandora Filmes e o Cine Petra Belas Artes, um dos mais tradicionais e queridos cinemas de rua de São Paulo.


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