A JORNADA
por Joba Tridente
Hoje em dia, muitas mulheres abdicam da maternidade
para realizar seus sonhos profissionais de infância ou de juventude. Outras até
buscam conciliar a vida profissional e a vida familiar (ou maternal), mas pagam
um preço alto..., principalmente se, por mais que se tentem presentes, se tornam
mães ausentes. Dilema difícil para mulheres com instinto maternal e anseio
profissional num mercado (global) de trabalho competitivo e (ainda?) redundantemente
machista (toma que o filho é teu!).
Relação conturbada entre pais e filhos é apêndice
recorrente no cinema (Spielberg que o diga!)..., anda a tiracolo até mesmo em
filmes trash dos estúdios Asylum e Syfy. Nem mesmo a literatura, o
teatro e a música a ignoram. O que não quer dizer que toda obra cultural que a opere
em sua trama seja um primor artístico e ou sequer relevante. Se não é questão
de gosto, é de leitura.
Em A Jornada (Proxima, 2019), a
diretora francesa Alice Winocour, que divide o roteiro com Jean-Stephane
Bron, traz à tona o dilema da astronauta Sarah Loreau (Eva Green),
que recebe o convite da Agência Espacial Europeia (ESA), para viagem de um ano à
Estação Espacial Internacional, e tem de decidir entre finalmente realizar o
sonho que acalenta desde os oito anos de idade ou ficar com a filha Stella
(Zelie Boulant-Lemesle). A mãe sabe que pode confiar os cuidados da
filha ao ex-marido, o astrofísico Thomas (Lars Eidinger), e pai
da garotinha de oito anos..., mas, a astronauta está realmente preparada para cortar
o cordão umbilical terrestre em prol da ligação do cordão
umbilical espacial?
Entre metáforas e questões sobre dedicação maternal e
comprometimento profissional, Winocour vai sublinhando a narrativa com
sutilezas que berram aos nossos ouvidos, já que, em sendo mulher, num ambiente
predominantemente masculino (já foi mais!), à beira das misoginia, Sarah
é obrigada a ouvir gracejos revoltantes sobre o lugar e ou a função da
mulher numa sociedade machofalocrata e se manter íntegra. Nem todo conselho
e ou advertência masculina à profissional (mulher e mãe) é explícita,
mas, quando se está fragilizada e se sentindo culpada ou frustrada por se ver
na iminência de abandonar a filha ou o tão sonhado projeto espacial, qualquer
gesto de um superior pode aumentar a tensão e causar desconforto imensurável. A
ansiedade abre feridas que podem não se fechar, se promessas forem quebradas...
Filmado (em maior parte) nas instalações da Agência
Espacial Europeia (ESA), na Rússia e Baikonur, no Cazaquistão, e contando com a
participação especial do astronauta francês Thomas Pesquet (da Expedição 51, em 2017), que contracena com as personagens de Eva Green
(Sarah), de Matt Dillon (o arrogante astronauta americano Mike
Shannon, capitão da missão) e Aleksey Fateev (o simpático cosmonauta
russo Anton Ochievski), a ficção (com cara de docudrama) ganha maior
credibilidade ao mostrar não apenas as observações técnicas de Pesquet, mas também
o funcionamento do centro de treinamento e de preparação física e psicológica
da ESA. Para o espectador, que também sonha em um dia galgar o espaço sideral,
a filmagem nas entranhas da Agência Espacial é uma mochila cheia. As sequências
de treinamento dos astronautas podem ser meio cansativas, mas
são essenciais para se compreender a razão do esforço físico de Sarah e
como essa etapa influenciará a sua
decisão entre o espaço sideral e a filha.
Embora, na astronáutica, a distância profissional
entre homens e mulheres tenha diminuído significativamente (a astronauta
norte-americana Peggy Annette Whitson, de 60 anos, por exemplo, participou de
três expedições e foi a primeira mulher a comandar duas missões na Estação
Espacial Internacional (2007 e 2017) e aquela, entre os astronautas da NASA,
com mais tempo no espaço: 665 dias), sempre há um resquício, conforme a cultura
local, a ser combatido. E é nesse resquício que Alice Winocour se detêm para
falar tanto de vínculo da maternidade quanto de discriminação de gênero. Até
onde um e outro interferem e ou afetam uma escolha profissional? Se não há julgamento
moral, na dependência de mãe e filha, e nem ético, no conflito cultural de
personagens com observações sexistas, toda escolha é egocêntrica? É você,
espectador, quem dará o veredicto.
Enfim, considerando que o roteiro escapa das
armadilhas da ficção científica e antes de discutir o quê os astronautas
levam às estrelas, se põe a refletir sobre o quê eles deixam no chão (Nos
preparamos muito para sair da Terra. Mas voltar é a parte mais difícil. Nos
damos conta de que a vida continuou sem você.); que, embora
majoritariamente masculino, o protagonismo é feminino; que o elenco é excelente
e que os diálogos (mesmo quando soam caricatos) são ótimos; que o drama
tipicamente europeu desconstrói a mítica norte-americana de que em todo o
planeta e universo conhecido e ou a se conhecer se fala o inglês estadunidense,
ao colocar cada personagem (excetuando a poliglota Sarah) falando em sua
língua pátria (francês, russo, alemão, inglês americano); que o conflito entre Sarah
e Stella é convincente; que a coleta de memórias terrestres para aplacar
a saudade no espaço emociona; que a pungente trilha sonora composta por Ryuichi
Sakamoto não incomoda e a fotografia de George
Lechaptois proporciona um realismo interessante e sem protagonismo..., A
Jornada é um drama contemporâneo que, com seu enredo envolvente e crível (Winocour entrevistou vários
astronautas antes de escrever a trama), pode surpreender qualquer gênero de público. Ah, entre os créditos finais é
apresentada uma série de fotos de mulheres astronautas com seus filhos.
*Joba
Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os
primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003),
de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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