domingo, 25 de março de 2018

Crítica: Madame



MADAME
por Joba Tridente*

Temas sociais, no cinema, podem ser tão interessantes e reflexivos, quanto irritantes, principalmente se (tão somente) partidários. Depende muito da linguagem, da intensidade do roteiro, da amplidão do contexto, do direcionamento e coerência do discurso. O cinema de mim pra mim mesmo, que só fala para iguais claudica e estaca pouco além de sua aldeia, sobretudo se maniqueísta. Para dialogar com o inimigo (?) faz-se necessário um bom jogo de cintura, flexibilidade, no mínimo, razoável..., e uma boa dose de humor (preferencialmente humor negro e jamais humor grosseiro). Pois, se apreende muito mais com mensagem subliminar do que com semente de abacate goela abaixo.

Madame (Madame, 2018), filme francês (em língua inglesa), dirigido por Amanda Sthers, escritora, dramaturga, roteirista e cineasta francesa, na sua segunda incursão no cinema (estreou em 2009, com Je vais te manquer), traz a público uma curiosa crônica de costumes burgueses contemporâneos (?). Uma sátira social saborosamente meditativa e aparentemente leve, em sua pluralidade multicultural. Um conto de princesa, abóbora e ratazanas.


Era uma vez... Numa vistosa casa em Paris, o rico casal americano Anne (Toni Collete) e Bob (Harvey Keitel) passa uma temporada de luxo. Ali, a vida corre às mil maravilhas entre patrões ostensivos e empregados invisíveis. Cada um sabe exatamente o papel que lhe cabe e principalmente a sua posição no tabuleiro de xadrez do mercado capitalista que “gera” oportunidades de trabalho para imigrantes. Diz o senso que patrão manda e empregado acata. Certo? Bem, hoje em dia (?) há controvérsias!

O casamento de madame Anne não está assim um donuts..., tampouco as finanças de Bob, mas a aparência é tudo, principalmente em Paris. Levado a negociar uma Santa Ceia de Caravaggio, para honrar compromissos, o casal decide oferecer um suntuoso jantar para um seleto grupo de 12 amigos europeus, entre eles o negociante de arte britânico David Morgan (Michael Smiley). Porém, toda via do azar com suas encruzilhadas, o alcoólatra e escritor (ou vice-versa) Steven (Tom Hughes), filho do primeiro casamento de Bob, aparece de surpresa e o pai o convida para esse encontro de celebridades. A supersticiosa Anne, ansiosa para resolver a tragédia do fatídico número de “13 de convidados” e sem tempo para mais um convite, decide transformar a sua governanta Maria (Rossy de Palma, a musa de Pedro Almodóvar, Jean-Paul Gaultier e Thierry Mugler), de pessoa simples a misteriosa e nobre espanhola, para compor o grupo..., com a recomendação dela beber e falar o mínimo.


Mas..., assim como na origem da crendice que azara o número 13, na Mitologia Nórdica, envolvendo o Deus da Trapaça Loki, como o 13º convidado que entrou de penetra num Banquete Celestial para 12 e provocou a morte de Balder, o Deus da Paz..., querendo fazer gracejo e ou tirar proveito da situação ridícula, o insolente Steven insinua para David, atraído pelo porte picassiano de Maria, os títulos e riquezas dela na Espanha. Daí que, antes que se dê conta do que está acontecendo, para desespero da maquiavélica Anne, a governanta (temporariamente promovida a nobre) Maria começa a namorar o apaixonado David. É claro que, como em todo bom Conto de Fadas, a invejosa madame real fará de tudo para acabar com a felicidade romântica da inocente madame forjada. Porém, até mesmo em um conto de princesa e príncipe de meia idade, quando se joga com o Destino, só após a cartada final se sabe quem fica e quem deixa a mesa. Estão abertas as apostas!


Madame fala (com muita propriedade) da tênue linha que liga a submissão à opressão funcional, por onde se equilibram os empregados domésticos (sujeitos às contingências dos patrões). O disfarce que “iguala” classes sociais diferentes, dando também status de madame a uma mera governanta imigrante, não vem de uma oportunidade, de uma brincadeira de ocasião (enquanto a patroa não vem), mas de um imposição social da senhoria...,  e se continua, é por mera dependência capital da burguesia despudorada capaz dos piores golpes para satisfazer seus desejos pessoais e materiais. Quanto ao imbróglio que enreda e amordaça a gentil Maria, embora no desenrolar da trama se saiba das reais intenções do trapaceiro Steven ao ampliar a farsa da misteriosa espanhola, a profundidade alcançada pela flecha da mentira no coração de David é incerta. Ainda que na bela sequência final (após a tormenta - numa metáfora arrepiante - a bonança parecer subjetiva) ele dê uma dica.

Se você é um cinéfilo e chegou até aqui, provavelmente está pensando que já viu alguma história (de Cinderela por um dia) parecida no cinema e ou na tv. É possível, ao menos na “troca” de identidade. O que difere e distingue a curiosa trama de Madame daquelas em filmes melodramáticos, onde personagens femininas simplórias oportunamente vasculham o guarda-roupas da patroa, se disfarçam (por diversão) em pessoas de classe alta e vivem um bela história de amor (“com beijo na chuva e final feliz”), é o modo como Amanda Sthers escancara a relação de aparência (“Ela é da família!”) entre empregados (invisíveis) e patrões (ostensivos), sem fazer alarde. Afinal “gente fina”, no alto da sua mentalidade burguesa, não gosta de escândalo..., porque expõe as suas mazelas cuidadosamente maquiadas.


Na arte, cada espectador absorve aquilo que o satisfaz (ou o entretém). Desse modo, o que me pareceu grandioso em Madame, pode ser repelido por um espectador que “esperava mais do discurso social” e ou ficou insatisfeito com o nível dos diálogos ácidos servidos em pratos salpicados de racismo e gotas de sexismo com pinceladas de assédio, no refinado banquete. Que me desculpem os críticos adeptos do politicamente correto, não dá pra se sentir ofendido diante de um cardápio que troça igualmente do estereótipo (?) dos norte-americanos, dos britânicos, dos franceses, dos irlandeses, dos espanhóis... Ah, o modus vivendi de cada um, que nos aproxima e nos distancia na “aldeia global”. A cada dia é mais difícil saber (ou traduzir!) o que é idiossincrasia e o que é hipocrisia étnico-racial.


Por conta do roteiro conciso de Sthers e Matthew Robbins, a narrativa (onde menos é bem mais do que se vê e ou se lê), em algum momento, pode dar a impressão de irregularidade no desenvolvimento dos arcos paralelos e mesmo dos personagens. Mas são pontos irrelevantes, meramente reforços ilustrativos (até descartáveis) que não influem na essência do enredo elegante e divertido que nos faz refletir sobre a fragilidade das relações sociais (nem sempre humanas).

Enfim, com sua narrativa bem humorada (às vezes melancólica, é verdade) que não exige do público nenhuma formação em sociologia ou antropologia para entender e ou se ver nas entrelinhas, Madame, que traz a expressiva Rossy de Palma roubando as cenas do excelente elenco, faz valer o seu ingresso pela cadência com que apresenta o desenrolar de uma história social (crítica na abordagem do racismo, da relação de trabalho doméstico, do sexo de conveniência) de forma direta, sem ranço de tese acadêmica partidária. Não é nenhuma obra-prima e muito menos o filme definitivo sobre o assunto, mas, com certeza, dá muito o quê pensar e discutir após a sessão..., inclusive sobre alguns achados (sombra e luz) técnicos!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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