MADAME
por Joba Tridente*
Temas sociais, no cinema, podem ser tão interessantes
e reflexivos, quanto irritantes, principalmente se (tão somente) partidários.
Depende muito da linguagem, da intensidade do roteiro, da amplidão do contexto,
do direcionamento e coerência do discurso. O cinema de mim pra mim mesmo, que só
fala para iguais claudica e estaca pouco além de sua aldeia, sobretudo se
maniqueísta. Para dialogar com o inimigo
(?) faz-se necessário um bom jogo de cintura, flexibilidade, no mínimo,
razoável..., e uma boa dose de humor (preferencialmente humor negro e jamais humor
grosseiro). Pois, se apreende muito mais com mensagem subliminar do que com
semente de abacate goela abaixo.
Madame (Madame, 2018), filme francês (em língua
inglesa), dirigido por Amanda Sthers,
escritora, dramaturga, roteirista e cineasta francesa, na sua segunda incursão
no cinema (estreou em 2009, com Je vais te manquer), traz a público uma curiosa crônica
de costumes burgueses contemporâneos (?). Uma sátira social saborosamente meditativa e
aparentemente leve, em sua pluralidade multicultural. Um conto de princesa,
abóbora e ratazanas.
Era uma vez... Numa vistosa casa em Paris, o rico
casal americano Anne (Toni Collete) e Bob (Harvey Keitel) passa
uma temporada de luxo. Ali, a vida corre às mil maravilhas entre patrões ostensivos
e empregados invisíveis. Cada um sabe exatamente o papel que lhe cabe e
principalmente a sua posição no tabuleiro de xadrez do mercado capitalista que “gera”
oportunidades de trabalho para imigrantes.
Diz o senso que patrão manda e empregado acata. Certo? Bem, hoje em dia (?) há
controvérsias!
O casamento de madame Anne não está assim um donuts...,
tampouco as finanças de Bob, mas a
aparência é tudo, principalmente em Paris. Levado a negociar uma Santa Ceia de
Caravaggio, para honrar compromissos, o casal decide oferecer um suntuoso
jantar para um seleto grupo de 12 amigos europeus, entre eles o negociante de
arte britânico David Morgan (Michael Smiley). Porém, toda via do
azar com suas encruzilhadas, o alcoólatra e escritor (ou vice-versa) Steven (Tom Hughes), filho do primeiro
casamento de Bob, aparece de surpresa
e o pai o convida para esse encontro de celebridades. A supersticiosa Anne, ansiosa para resolver a tragédia
do fatídico número de “13 de convidados” e sem tempo para mais um convite,
decide transformar a sua governanta Maria
(Rossy de Palma, a musa de Pedro Almodóvar, Jean-Paul
Gaultier e Thierry Mugler), de pessoa simples a misteriosa e nobre espanhola,
para compor o grupo..., com a recomendação dela beber e falar o mínimo.
Mas..., assim como na origem da crendice que azara o
número 13, na Mitologia Nórdica, envolvendo o Deus da Trapaça Loki, como o 13º convidado que entrou de penetra num
Banquete Celestial para 12 e provocou
a morte de Balder, o Deus da Paz..., querendo fazer gracejo e
ou tirar proveito da situação ridícula, o insolente Steven insinua para David,
atraído pelo porte picassiano de Maria,
os títulos e riquezas dela na Espanha. Daí que, antes que se dê conta do que
está acontecendo, para desespero da maquiavélica Anne, a governanta (temporariamente promovida a nobre) Maria começa a namorar o apaixonado David. É claro que, como em todo bom Conto
de Fadas, a invejosa madame real fará
de tudo para acabar com a felicidade romântica da inocente madame forjada. Porém, até mesmo em um conto de princesa e príncipe de meia idade, quando se joga com o Destino, só após a
cartada final se sabe quem fica e quem deixa a mesa. Estão abertas as apostas!
Madame
fala (com muita propriedade) da tênue linha que liga a submissão à opressão funcional, por onde se
equilibram os empregados domésticos (sujeitos às contingências dos patrões). O
disfarce que “iguala” classes sociais diferentes, dando também status de madame a uma mera governanta imigrante, não vem de uma
oportunidade, de uma brincadeira de ocasião (enquanto a patroa não vem), mas de um imposição social da senhoria...,
e se continua, é por mera dependência
capital da burguesia despudorada capaz dos piores golpes para satisfazer seus
desejos pessoais e materiais. Quanto ao imbróglio que enreda e amordaça a gentil Maria, embora
no desenrolar da trama se saiba das reais intenções do trapaceiro Steven ao ampliar a farsa da misteriosa
espanhola, a profundidade alcançada pela flecha da mentira no coração de David é incerta. Ainda que na bela sequência
final (após a tormenta - numa metáfora arrepiante - a bonança parecer subjetiva)
ele dê uma dica.
Se você é um cinéfilo e chegou até aqui,
provavelmente está pensando que já viu alguma história (de Cinderela por um dia) parecida no cinema e ou na tv. É possível, ao
menos na “troca” de identidade. O que difere e distingue a curiosa trama de Madame daquelas em filmes
melodramáticos, onde personagens femininas simplórias oportunamente vasculham o
guarda-roupas da patroa, se disfarçam (por diversão) em pessoas de classe alta
e vivem um bela história de amor (“com
beijo na chuva e final feliz”), é o modo como Amanda Sthers escancara a
relação de aparência (“Ela é da família!”)
entre empregados (invisíveis) e patrões (ostensivos), sem fazer alarde. Afinal “gente
fina”, no alto da sua mentalidade burguesa, não gosta de escândalo..., porque
expõe as suas mazelas cuidadosamente maquiadas.
Na arte, cada espectador absorve aquilo
que o satisfaz (ou o entretém). Desse modo, o que me pareceu grandioso em Madame, pode ser repelido por um
espectador que “esperava mais do discurso
social” e ou ficou insatisfeito com o nível dos diálogos ácidos servidos em
pratos salpicados de racismo e gotas de sexismo com pinceladas de assédio, no refinado
banquete. Que me desculpem os críticos adeptos do politicamente correto, não dá pra se sentir ofendido diante de um cardápio que troça igualmente
do estereótipo (?) dos norte-americanos, dos britânicos, dos franceses, dos irlandeses,
dos espanhóis... Ah, o modus vivendi
de cada um, que nos aproxima e nos distancia na “aldeia global”. A cada dia é mais
difícil saber (ou traduzir!) o que é idiossincrasia e o que é hipocrisia étnico-racial.
Por conta do roteiro conciso de Sthers e Matthew
Robbins, a narrativa (onde menos é bem mais do que se vê e ou se lê), em algum
momento, pode dar a impressão de irregularidade no desenvolvimento dos arcos
paralelos e mesmo dos personagens. Mas são pontos irrelevantes, meramente
reforços ilustrativos (até descartáveis) que não influem na essência do enredo
elegante e divertido que nos faz refletir sobre a fragilidade das relações
sociais (nem sempre humanas).
Enfim, com sua narrativa bem humorada (às vezes
melancólica, é verdade) que não exige do público nenhuma formação em sociologia
ou antropologia para entender e ou se ver nas entrelinhas, Madame, que traz a expressiva Rossy de
Palma roubando as cenas do excelente elenco, faz valer o seu ingresso pela
cadência com que apresenta o desenrolar de uma história social (crítica na
abordagem do racismo, da relação de trabalho doméstico, do sexo de conveniência) de forma
direta, sem ranço de tese acadêmica partidária. Não é nenhuma obra-prima e muito menos o filme definitivo sobre o assunto, mas, com certeza, dá muito o quê pensar e discutir após a sessão..., inclusive sobre alguns achados (sombra e luz) técnicos!
*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de
idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico”
do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
Excelente publicação!
ResponderExcluir..., mais uma vez, Grato, Marina Seischi!
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