terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Crítica: Lucky


LUCKY
por Joba Tridente*

O cinema está cheio de gente de nome e renome que dá voltas e mais voltas pra contar uma história frouxa que vai de lugar algum para lugar nenhum embalada por trilha sonora horrenda. Assim como de gente que chega de mansinho, encontra um atalho, abre caminho e surpreende com um trabalho primoroso, fazendo de uma pequena crônica de costumes um poemeto visual de encher os olhos, abraçar a alma e alargar o sorriso..., como o quarteto formado por três estreantes: John Carroll Lynch (diretor), Logan Sparks e Drago Sumonja (roteiristas), e um consagrado: Harry Dean Stanton (ator), que dá vida longa a um personagem fascinante: Lucky.

Lucky (Lucky, EUA, 2017) marca três chegadas (diretor e roteiristas) ao mercado cinematográfico e uma partida das telonas, ao registrar a última performance do ator, cantor e músico Harry Dean Stanton, que ganhou notoriedade por seu desempenho como Travis, em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, e que, aos 91 anos de vida e 63 de carreira, nos deixou recentemente (15.09.2017). Na trama, por vezes a história de Lucky se confunde com a do próprio Stanton, que durante a Segunda Guerra Mundial também serviu na Marinha dos EUA, como cozinheiro..., dando um caráter documental à ficção.


O drama, lapidado ao extremo, se passa numa pequena cidade (qualquer), cercada de montanhas, cactos, deserto..., possivelmente no Novo México. A narrativa melancólica e jamais depressiva, que flerta com o realismo fantástico, orbita ao redor da rotina do velho Lucky (Stanton), com seus cigarros, exercícios de yoga, palavras cruzadas, programas de competições culturais na tv, caminhadas até a lanchonete, a mercearia, ao bar..., onde encontra alguns amigos, também velhos e saudosos (encarnados por grandes nomes: David Lynch, Beth Grant, James Darren, Hugo Armstrong, Barry Shabaka Henley, Yvonne Huff, Tom Skerritt, Ed Begley Jr.).

Nesses (re)encontros diários, onde cada um encara a velhice a seu modo, eles trocam repetidas confidências. Lucky “filosofa” sobre a vida, a morte e o “nada” futuro, além de desconcertar os ouvintes com suas teorias sobre o realismo e a verdade. Determinado e solidário, não mede esforços para consolar e ou defender o amigo Howard (David Lynch, adorável), cujo animal de estimação, um cágado de 100 anos, chamado de Presidente Roosevelt, fugiu de casa.


Para Lucky..., que envelhece sozinho (não solitário!), atropelado por lembranças infantojuvenis, naquele lugarejo longínquo, onde a modernidade, tão aborrecida quanto alguns programas de televisão, demora pousar..., a vida é feita de aventura e desventura, enquanto se degusta um copo de leite, de café cremoso ou de bloody mary em boa companhia. Provavelmente até o cágado Presidente Roosevelt, em sua escapada lenta pelo deserto, sabe disso ao perder-se na busca de algum sentido para a vida.

Saber contar e dirigir uma história cativante é um privilégio. Sorte de iniciantes ou não, a verdade é que Lucky é um drama belíssimo, cuja singularidade faz lembrar o também contemplativo Paterson (2016), de Jim Jamurch. É notável o jeito de Carroll Lynch trabalhar a experiência mística do ateu Lucky diante da resistência do Éden e da insistência do Inferno, na ambiguidade da que fecha ou abre as Portas da Percepção ou da Conveniência.


A narrativa, sem arestas e sem pressa, emociona com sequências irretocáveis, como a do pungente diálogo entre Lucky e o veterano militar Fred (Tom Skerritt), na troca de experiências sobre os horrores da Segunda Guerra, ou da animada festa de aniversário de dez anos de Juan Wayne (Ulysses Olmedo), filho da comerciante Bibi (Bertila Damas), em que Lucky canta a enternecedora Volver, Volver (de Fernando Maldonado)..., canção que, de certo modo, dialoga com a sombria I See A Darkness, de Bonnie 'Prince' Billy, interpretada por Johnny Cash, numa cena arrepiante (praticamente em preto e branco) no quarto de Lucky... Infelizmente (como é de praxe no Brasil) as duas canções importantes no contexto não estão legendadas.

Enfim, o enredo simples e convincente de Lucky te enreda de tal forma que, quando o filme termina, você fica sentado na poltrona, hipnotizado pelo brilhantismo daquela derradeira cena surreal. Você fica ali, lendo os créditos, esperando algo a mais. Talvez uma cena escondida! E precisa? Não! Aqui o menos é inacreditavelmente muito mais. A medida do filme é exata no entrelaçado da imagem e da palavra. O que fica é um leve sorriso de chegada e ou de partida!

Lucky é recomendado para o público adulto o suficiente para compreender o processo de envelhecimento do ser humano e todas as suas idiossincrasias... Deixe-se surpreender!



*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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