quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Crítica: Caminhos da Floresta


Há algumas décadas os contos clássicos dos “pais” da literatura “para” crianças Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863), Wilhelm Grimm (1786-1859) e Hans Christian Andersen (1805-1875) vêm despertando interesse de estudiosos e ganhando novas leituras e ou devolvendo histórias à sua origem, digamos, mais macabras. Em 2002 a DC Comics/Vertigo começou a publicar o sensacional título Fables (Fábulas), que traz os mais famosos personagens dos Contos de Fadas vivendo clandestinamente na Nova York dos dias de hoje. Em 2011 a hq acabou inspirando a série televisiva Once Upon a Time (Era Uma Vez). No entanto, bem antes das duas releituras, Stephen Sondheim e James Lapine escreveram o libreto do musical Into the Wood (Caminhos da Floresta), que junta num mesmo conto, entre outros, Bruxa, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, João (e o Pé de Feijão), Cinderela e Rapunzel. O espetáculo teatral, que estreou no Old Globe Theatre (San Diego) em 1986 e na Broadway (Nova York) em 1987, após várias remontagens de sucesso, “ganha” a sua versão cinematográfica.


Caminhos da Floresta (Into the Wood, EUA, 2014), dirigido por Rob Marshall, é um drama musical romântico com pitadas de humor e de horror. Observando a mesma estrutura do teatro, em seu primeiro ato os Caminhos da Floresta são iluminados pelos desejos: a Bruxa (Meryl Streep) quer recuperar a beleza; o Padeiro (James Corden) e sua Mulher (Emily Blunt) querem um filho; Chapeuzinho Vermelho (Lilla Crawford) quer chegar são e salva do Lobo (Johnny Depp) à casa da vovó; João (Daniel Huttlestone) quer seguir os conselhos da mãe (Tracey Ullman) e vender a vaca por um bom preço; Cinderella (Anna Kendrick) e Rapunzel (Mackenzie Mauzy) querem encontrar seus Príncipes (Chris Pine e Billy Magnussen).


Em seu segundo ato, os Caminhos da Floresta são assombrados pelo (alto) preço que os personagem devem pagar pela realização de seus desejos, pois, nem mesmo no Reino da Fantasia os desejos são de graça. Podem ser gratuitos, mas nunca de graça. O preço? A consciência de cada um em cada passo (mal?) dado na trilha da vida vulgar em busca de felicidade (que diz um ditado: não se compra!)..., assunto discutido com maestria no antológico romance de ficção científica Um Estranho Numa Terra Estranha (1961), de Robert A. Heilein. As questões morais (infidelidade, egoísmo, vaidade, insegurança, roubo, assassinato) que afligem os nossos velhos conhecidos também incomodam o espectador (O que você faria?). É a dialética da oposição (moral e imoral, luz e sombra) fazendo eco e sinalizando que talvez a Disney não seja tão irredutível assim.


Quase todo mundo sabe como terminam os Contos da Carochinha..., ou pensa que sabe, ao menos na imaginação, o que aconteceu a cada personagens após o Felizes para Sempre. Há algumas paródias divertidas (pela web, inclusive) em prosa, hqs e animações, sobre o depois do Final Feliz nos Contos de Fadas. Todavia, ainda que tenha uma sequência hilária (deliciosamente brega) com os Príncipes (Pine e Magnussen) cantando Agony, em uma cachoeira, Caminhos da Floresta está longe de ser considerado sátira. Também porque o seu conteúdo ainda guarda resquícios da época (de muitas máscaras de moralidade) em que foi criado o espetáculos teatral.


A adaptação de Caminhos da Floresta ficou por conta de James Lapine (um dos autores do libreto) e, em meio à polêmica puritana do corta não corta cenas da Mulher do Padeiro e do Lobo e Chapeuzinho Vermelho, só o destino de Rapunzel foi mudado. Só pra registrar: a alegada “falta de decoro” das personagens são ridículas se comparadas às novelas brasileiras (da tarde) e séries animadas televisivas. Evidentemente não é a versão definitiva sobre o futuro dos habitantes do Mundo do Faz de Conta, mas é, no mínimo, curiosa, com seu círculo vicioso, suas intrigantes metáforas e passagens (incorretas?) que devem deixar os mais puristas com a pulga atrás da orelha ao ouvir tiradas espirituosas, como a do Príncipe da Cinderela: “Fui criado para ser sedutor e não para ser sincero”.


Rob Marshall, que esteve ótimo na direção de Chicago e (a mim) decepcionou em Nine, embarca com vontade no enredo “fantasia”, costurando satisfatoriamente três universos diferentes: teatro, cinema e livro ilustrado, com excelentes soluções cênicas e bons efeitos especiais. Ainda que não tenha nenhuma música grudenta ou assobiável, Caminhos da Floresta tem composições surpreendentes. O elenco é bacana e dá conta do recado. Não espere grandes vozes (operísticas)..., estas são mais modestas, tipo gente comum (feito os personagens) cantando. O que não quer dizer que não arrebatem o espectador.

Enfim, vale ressaltar que Caminhos da Floresta é um filme para quem aprecia o Universo Fantástico, com suas histórias míticas, repletas de simbolismo infantil e adulto, mas que goste também de musical

domingo, 25 de janeiro de 2015

Crítica: Minúsculos - O Filme


Conheci a bela série Minúsculos, da Futurikon, em 2007, e fiquei encantado com o roteiro, o humor, a técnica fundindo animação a cenário real, os adoráveis personagens: joaninhas, aranhas, moscas, lagartas, formigas, caramujos... Assisti diversas vezes a todos os episódios e rindo sempre dessas pérolas criadas por Hélène Giraud e Thomas Szabo. Em 2013 a série virou um longa em 3D e, com certo atraso, está estreando no Brasil, para felicidade e deleite de quem já conhece o fantástico mundo desses pequeninos e para fazer, com certeza, novos admiradores entre crianças e adultos.


Minúsculos - O Filme (Minuscule – La Vallée des Fourmis Perdues, França/Bélgica),  narra a saga de uma joaninha que, num desafio de voo, com uma turma de moscas rebeldes, acidenta-se e é acolhida por um grupo de formigas pretas, empenhadas em levar para o formigueiro uma caixa de torrões de açúcar e também em se defender do ataque de um pequeno, mas feroz, destacamento de formigas-de-fogo.


A jornada até o formigueiro das nossas heroínas, passando por floresta, rios e montanhas é fascinante, graças ao roteiro inteligente e a direção cuidadosa de Giraud e Szabo, que surpreendem, emocionam e divertem a cada sequência repleta de ação, aventura e fantasia. Assim como na série, os expressivos insetos de Minúsculos - O Filme, não falam, apenas emitem sons particulares (dispensando legendas) que qualquer espectador, infantil ou adulto, vai entender. A técnica (como foi feito isso?) que já deixava embasbacado o espectador diante da tv, está muito mais admirável na telona.


Minúsculos reprisa duas sequências clássicas da série, o desafio de voo entre joaninhas e moscas e o desapontamento da aranha amarela em sua bela teia entre galhos, e cria uma cena antológica com a aranha preta doméstica (meu personagem favorito na tv), em uma casinha de boneca encalhada no esgoto. O final da história? Bem, é surreal!


Minúsculos foi premiado em 2014 no Mill Valley Film Festival (San Francisco) - Gold Award du Film pour Enfants, e no Chicago International Children's Film Festival - Prix d'Honneur du Film d'Animation. Foi indicado ao Cristal Best Feature Award at the Annecy International Animated Film Festival; ao European Film Award for Best Animated Feature Film; ao 2013 Tallinn Black Nights Film Festival Award for Best Children’s Film. Concorreu a uma vaga, mas infelizmente, ficou de fora do 87 th Oscar Awards (2015).


Vá com toda a família, confira e se apaixone. Ah, e se, antes ou depois, quiser conferir alguns episódios da série, 68 deles estão disponíveis no Portal Minúsculos, da Band.

RECOMENDO uma visita ao excelente portal do filme Minuscules para desfrutar do making-of (fotos e vídeos em francês e ou inglês) e do bonito pressbook ilustrado (PDF em francês); fazer download de calendário perpétuo, papel de parede e marcador de páginas..., e saber um pouco mais sobre os personagens etc etc etc...

sábado, 24 de janeiro de 2015

Crítica: Grandes Olhos


O que será que torna popular, da noite para o dia, uma obra de arte? O acaso? Ser descoberta por uma celebridade? O artista ser também um exímio vendedor? E por que uma obra de arte que faz tanto sucesso com o grande público é tão menosprezada pela crítica especializada e por artistas menos conhecidos? Atualmente, o artista plástico brasileiro Romero Britto, xodó das celebridades norte-americanas e personalidades mundiais, que vende a rodo a sua colorida arte pop, é o saco de pancada da vez.

Quem, antes dele, também criou alvoroço nas terras do Tio Sam, na década 1960, foi o casal Walter e Margaret Keane, com seus quadros, pôsteres e cartões, onde figuravam crianças melancólicas e de grandes olhos. Excetuando Andy Warhol, que disse algo tipo: “Se a obra de Keane fosse ruim não faria tanto sucesso”, os especialistas (como o crítico John Canaday, de New York Times)  diziam que ela era apenas kitsch, decorativa e sem nenhum valor. O que não impediu o casal de faturar milhões de dólares e inspirar artistas de outras artes, como Tim Burton, também um colecionador de Keane. Hoje o que mais se vê são animações com personagens de olhos grandes.


E por falar em controvérsia, é Tim Burton quem traz à telona o segredo por trás do sucesso das telas e telinhas melodramáticas dos Keane em Grandes Olhos (Big Eyes, EUA, 2014). Na verdade, a fraude por trás do sucesso. Quem pintava os quadros era Margaret (Amy Adams), mas quem levava a fama (com a sua conivência) era Walter Keane (Christoph Waltz), seu marido. O casal se conheceu numa exposição de rua, em meados dos anos 1950: ele expondo suas paisagens parisienses e ela suas meninas tristes de grandes olhos. Logo se casaram e Walter decidiu que já era hora de buscar uma galeria. Esnobados, ele encontrou uma alternativa, alugar as paredes de um bar, onde a obra de Margareth foi descoberta e a dele preterida. Como ela também assinava Keane, ele achou melhor assumir a autoria, alegando para a esposa que o mercado não aceitava muito bem uma artista. A partir de então, Margaret pintava e Walter vendia os quadros, fazendo nome e fortuna. A farsa foi desvelada em 1970, seis anos após a separação do casal, mas o processo se estendeu até 1990.

Grandes Olhos é (mais) uma história (hollywoodiana) inspirada em fatos. Se na sinopse parece interessante, no cinema fica a desejar. Infelizmente, excetuando a direção de arte, com ótima reconstituição de época (1950,60,70), o filme não dá liga..., pincela, pincela e a tinta não seca. O roteiro raso e parcial, da irregular dupla Scott Alexander e Larry Karaszewski, beira o infantilóide..., respinga aqui e ali para resultar num descartável quadro borrado mais abstrato que expressivo.


A direção de Burton é tacanha, claudicante. Uma hora esboça uma dramédia e na outra uma comédrama. Não que isso importe, já que os “personagens” não têm alma, são meras caricaturas mudas ou falastronas. As performances de Waltz e de Adams são dignas do prêmio Framboesa de Ouro ou do Nafta. Desperdício total de talento. Ele, se esforçando para ser engraçado, está mais para vilão maçante de desenho animado do que para cínico. Ela, se esforçando no papel de vítima do sistema machofalocrata americano (da época?) que não dava voz e nem trabalho decente às mulheres, é só caras e bocas choramingas (também nas pinturas)..., até conhecer as salvadoras Testemunhas de Jeová.

Grandes Olhos (e pequenas ideias) é parcial do princípio ao fim. A única “verdade” que lhe interessa é a da “vítima” Margaret Kaene. Quanto ao egocêntrico Walter Kaene, pelo material biográfico disponível na web, não era tão inepto como a trama faz crer. Seu pioneirismo na cultura de massa, ao produzir em larga escala, antes de Warhol, reproduções das “suas” obras em pôsteres e cartões, para “atender” a quem não podia pagar pela obra original, merecia mais destaque. Mas ele não é o foco da história.

Para dar alguma substância ao melodrama, Burton até evoca no sub-subtexto, em duas breves sequências, uma “conversa clichê” sobre “o que é arte”, para o galerista Ruben (Jason Schwartzman), que influencia a compra de seus clientes, e para o crítico e historiador de arte do New York Times, John Canaday (Terence Stamp), que influencia os seus leitores ditando o que é ou não de “bom gosto”. Não tivesse morrido em 1985, seria interessante conhecer o pensamento de Canady para a arte que se “pratica” hoje em dia. Mas, como também essa discussão não é o foco da história, passa batida. Ah, e se você espera também o levantamento de uma bandeira do movimento feminista, esqueça..., verá apenas a “libertação econômica” de uma mulher que se cansou de criar e o marido levar a fama.


Grandes Olhos carece de ritmo, de humor (real), de romance (real), de arrebatamento. Seus personagens são tão assexuados e insossos que nem é preciso tirar a criançada da sala (elas não vão se interessar mesmo), tamanho o puritanismo da história: dois ou três beijinhos e nada mais. Nesse quesito a série baba Glee é muito mais avançada, com um só beijo o garoto “engravidou” a garota. A sequência-paródia (fósforos na fechadura) de O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, é tão imbecil que leva um tempinho para (quem tem) o cérebro processar. Ela também merece um Framboesa de Ouro ou um Nafta de pior sequência de todos os tempos.

Enfim, considerando a marca Tim Burton (no máximo em 30%) e que muitos conhecem os quadros (bregas?) das crianças olhudas de Keane, mas desconhecem a farsa autoral; que há ao menos uma sequência realmente burtoniana (no supermercado) digna de boa nota...,  se quiser, arrisque, vai que você gosta. A melhor consideração é sempre aquela que se faz por conta própria. 


Nota: Se tiver curiosidade em conhecer o intrincado mercado da arte, leia A Palavra Pintada (The Painted Word, 1975), de Tom Wolfe, lançado no Brasil pela LPM, em 1987, com tradução de Lia Alverga-Wyler.  


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Crítica: Foxcatcher - Uma História que Chocou o Mundo


Para muitos atletas, principalmente os iniciantes, o esporte pode ser a glória e ou a perdição. Aqui no Brasil são muitas as notícias de abuso sexual, exploração financeira, assédio moral, falência de patrocínio etc. Enquanto escrevo minhas considerações sobre Foxcatcher - Uma História que Chocou o Mundo (Foxcatcher, EUA, 2014) penso no surfista brasileiro Ricardinho, morto a tiros por um policial, nesta semana, na paradisíaca Guarda do Embaú, em Santa Catarina, por causa de um cano de água quebrado. Notícia que, por aqui, não seria mote para cinema. Diferente da ocorrida em 1996, nos EUA, envolvendo o excêntrico multimilionário John du Pont (Steve Carell) e os irmãos Mark Schultz (Channing Tatum) e Dave Schultz (Mark Ruffalo), campeões mundiais de luta greco-romana, e que está chegando aos cinemas na visão (ficcional) do diretor Bennett Miller.


Em meados de 1980, Mark Schultz, campeão olímpico em 1984 e mundial em 1985, se preparava para disputar as Olimpíadas em Seul (1988), quando foi surpreendido pelo telefonema do megaempresário John du Pont, convidando-o para treinar no complexo esportivo sediado na sua fazenda Foxcatcher, na Filadélfia, e integrar a sua equipe de lutadores. O atleta, em dificuldades financeiras e sem patrocinador, aceitou. Com o passar do tempo, a amistosa relação com Du Pont arrefeceu. A chegada inesperada do seu irmão Dave Schultz, também campeão olímpico em 1984 e que demorou a aceitar o convite para ser treinador, agravou a crise entre o atleta sonhador de títulos para os EUA e o esquizofrênico proprietário da equipe em busca de autopromoção. Em 1988, Mark deixou Foxcatcher Farm, vivo. Em 1996, Dave deixou Foxcatcher, morto.


Quando se trata de biografia, a memória é traiçoeira e, portanto, a melhor forma de alcançar um senso comum é descobrir o que há entre o “foi assim” e o “acho que foi assim”. Baseado no roteiro de E. Max Frye e Dan Futterman, Foxcatcher - Uma História que Chocou o Mundo, cujo apelativo subtítulo brasileiro devia acrescentar Esportivo Norte-Americano, “reconstitui”, num tom de thriller psicológico, apenas os acontecimentos que vão de 1986 a 1996, na Foxcatcher Farm. Tempo suficiente para mergulhar na psique dos três protagonistas, durante o pré e o pós-torneios de luta greco-romana, para conhecer seus prazeres e dissabores na prática da modalidade esportiva e na conturbada relação de mútua dependência entre patrocinado e patrocinador..., que pode ter levado à (inexplicável) tragédia esportiva.

Um bom enredo não se sustenta sem a excelência da direção e Bennet Miller demonstra, como raros, saber dirigir até o silêncio. Valorizadas pela fotografia suntuosamente fria de Greig Frase, suas longas e silenciosas sequências são magníficas. A ausência (quase total) de trilha chorosa para conduzir a emoção do espectador, apavora..., porque não se sabe o que virá na próxima cena. Perturba, porque o grande público (dependente do clichê) não está acostumado a se emocionar por conta própria e muito menos com diálogo monossilábico.


Independente da fonte inspiradora, Foxcatcher tem uma boa história e muito bem narrada. O ritmo (reflexivo e) lento, acompanhado de sons naturais e o silêncio angustiante de seus protagonistas, provoca, a princípio, um estranhamento que logo arrebata o espectador mais exigente. O elenco protagonista dá um show à parte. O asqueroso John du Pont (Carell), o taciturno Mark Schultz (Tatum) e o amável Dave Schultz (Ruffalo) são encarnados por três atores em estado de graça. Suas pungentes performances impressionam, arrepiam até quem nunca ouviu falar do acontecido. E tem gente que acha que laboratório é frescura de diretor.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Crítica: Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)


Sabe aquele momento raro em que mal começa o filme e você pensa: Uau!, e o filme continua e você: Cara!, e quando termina você complementa: Valeu cada centavo!..., e sai da sala com a alma lavada? Esse filme é Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), do genial Alejandro González Iñárritu, um dos filmes mais desconcertantes de 2014.

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), o subtítulo alternativo acompanha créditos iniciais (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance, EUA, 2014), comédia de humor negro e realismo mágico (área em que os latinos são praticamente imbatíveis), fala da tensão vivida pelo ator Riggam Thomson (Michael Keaton) durante os dias que antecedem a estreia do espetáculo What We Talk About When We Talk About Love (De Que Falamos Quando Falamos De Amor), baseado no conto homônimo do escritor Raymond Carver (1938-1988), que ele adaptou, dirige e protagoniza em um teatro da Broadway.


Riggam, que ainda é lembrado pelo sucesso de uma trilogia cinematográfica de 25 anos atrás, quando encarnou o super-herói Birdman e se recusou a fazer um 4º filme da franquia, quer provar para crítica especializada (e a si mesmo!) que também é um ator (sério) capaz de representar qualquer papel no teatro. Porém, inseguro e emocionalmente imaturo para lidar com o estresse da produção, ele se deixa levar pelo seu alter ego que (no compasso hipnótico da bateria de António Sánchez) lhe provoca surtos alucinantes. Preso entre o real (a história no teatro) e o imaginário (a história no cinema) o diretor e ator entra em parafuso ao tentar resolver os “infindáveis” problemas familiares e de rotina da produção.


Ácido, por vezes nostálgico, e melancolicamente engraçado, Birdman é um filme de autor sobre ator e sobre a arte de atuar. Hoje, no palco do entretenimento, o tempo é o da lucrativa arte fugaz, onde se confundem o célebre artista (de formação) e a celebridade artista (da mídia). É nesse cenário transitório de (re)afirmação profissional (cinema/teatro) e do oportunismo da arte midiática, onde atores e críticos travam o seu ego-embate na demarcação de território, e até mesmo as redes sociais influenciam o gosto popular, que Alejandro Iñárritu não conta palavras para descrever as contradições de uma profissão cheia de conceitos (de espaço) e preconceitos (de gênero).

O cinema do diretor mexicano é uma obra em constante evolução e ebulição..., e cada vez mais estranho ao hollywoodiano encaixadinho. O apuro narrativo e técnico de Birdman impressiona pela sagacidade. Iñárritu brinca com a desconstrução do protagonista, personagem e ator (Keaton, como se sabe, foi o Batman de Tim Burton em 1989 e 1992); simula (descaradamente) o filme em um único plano-sequência nas lentes admiráveis de Emmanuel Lubezki; cria diálogos ferinos (Você é uma celebridade, não um ator!), hilários e absurdos (Lesley: Eu gostaria de ter mais autoestima. Laura: Você é uma atriz!)..., dando um nó insólito na cabeça do espectador.


Provocativo, Birdman é uma experiência única..., tira a plateia (do cinema e do teatro) da área de conforto, chacoalha e, após um voo incerto nas asas da fantasia, a abandona tonta para apreciar o final (inesperado) do espetáculo. O seu elenco é tão primoroso que todos se destacam. Michael Keaton, como o seu personagem, se reinventa e surpreende maravilhosamente num papel cheio de nuances; Edward Norton está hilário na pele do famoso ator Mike Shiner (verdadeiro só no palco); Emma Stone esbanja expressividade no corpo de Sam, a filha problemática de Riggam; Naomi Watts (Lesley) e Andrea Riseborough (Laura) exploram bem as minúcias de duas atrizes em crise amorosa no palco e fora dele; e Zach Galifianakis, não desafina o grupo com seu agente Brandon, mais preocupado com os lucros que com as desavenças dos bastidores. Ah, a emblemática bateria de António Sánchez é hors-concours.

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) é cinema para aquele público ousado, que gosta de ser surpreendido, e não para o público acomodado com as comediazinhas besteirol norte-americanas e brasileiras.  Um filme que já nasce clássico para brilhar ao lado de Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder; A malvada (All About Eve, 1950) de Joseph L. Mankiewicz..., e principalmente daquele que me parece mais próximo do contexto: A Noite Americana (La nuit américaine, 1973), de François Truffaut.

..., Isto é real ou você está me filmando?

sábado, 17 de janeiro de 2015

Crítica: O Jogo da Imitação


Muita coisa importante acontece diariamente nos subterrâneos governamentais em todo o mundo democrático (ou não). Todavia, a gente comum só toma conhecimento de algum segredo quando a sétima chave finalmente abre a fechadura (anos, décadas após o ocorrido) e o assunto resgatado ganha notoriedade na mídia, em livro, peça teatral, cinema. Confesso que jamais tinha ouvido falar do matemático Alan Turing (1912-1954) e a sua fantástica máquina Christopher ou Maquina Turing, precursora dos computadores, antes de assistir ao Jogo da Imitação (The Imitation Game, RU, 2014).

O Jogo da Imitação, dirigido pelo norueguês Morten Tyldum, com roteiro do americano Graham Moore, levemente inspirado no livro Alan Turing: The Enigma (1983), do matemático britânico Andrew Hodges, conta, em flashbacks, três fases da vida do também matemático e criptoanalista Alan Turing (Benedict Cumberbatch, arrebatador), que esteve a serviço da inteligência britânica, em Bletchley Park, durante a 2ª Guerra Mundial. Liderando um grupo diversificado de especialistas, Turing criou a máquina Christopher para decifrar os códigos da processadora Enigma, um sistema criptográfico de comunicação da Alemanha Nazista. Ironicamente, a Máquina de Turing, que salvou milhares de vida, não ajudou a “salvar” a sua, no pós-guerra, pois, aos olhos da Inglaterra, ele era considerado um criminoso hediondo. Seu crime? Era homossexual!


Recentemente vimos no cinema o excelente As Aventuras de Paddington, que fala de um educado urso peruano que decide imigrar para Londres, em busca de melhores dias, e não encontra a receptividade que esperava dos ingleses. Não é diferente com Turing que, independente do seu grande serviço prestado à Inglaterra e ao mundo aliado, sucumbiu à intolerância sexual em seu próprio país, onde (até 1967) era muito maior que qualquer ato patriótico.  

O Jogo da Imitação não é uma cinebiografia das mais fiéis. O que não é novidade, já que fidelidade, até mesmo às ficções adaptadas, não é o forte do cinema. No entanto, a omissão e ou a inversão de alguns fatos, não chega a desvirtuar totalmente a essência da história deste brilhante cientista, mais popular entre os estudantes de TI e de informática básica..., apenas a torna mais dramática e mais tensa. Como, por exemplo, ao explorar os limites (?) da inteligência humana a serviço do bem e do mal, ainda que seja relativo (do ponto de vista de quem o pratica) o fazer o bem e o fazer o mal. Um embate profícuo que a torna mais interessante por mostrar apenas os ingleses em ação. Ou seja, enquanto da Alemanha só sabemos da existência de uma máquina eletromecânica, a Enigma, que gera mais de 159 milhões de configurações em mensagens cifradas para os pelotões alemães promoverem a barbárie em terra, ar e mar, na Inglaterra vemos o trabalho praticamente diuturno de Turing (“apenas uma máquina pode derrotar outra máquina”) e sua equipe, que incluía o campeão de xadrez Hugh Alexander (Matthew Goode), e a mestre em cálculos Joan Clarke (Keira Knightley), correndo contra o tempo na busca do código-chave capaz de fazer a Christophe desvelar a criptografia alemã, vencer a invencível Enigma e por fim à guerra.


A exposição da lógica matemática, as operações de quebra de códigos e criação da Christophe são o que mais fascinam nesse drama de (calculado) suspense. Talvez até desperte o matemático oculto no espectador traumatizado com o ensino escolar. Eu mesmo ando interessado em sua poética nada fria. As outras duas fases do enredo, a adolescência e a abominável condenação, servem (ainda que rasas) para compreender o processo da sua formação profissional e do eu destino cruel.

Dando brilho à casca, para preservar a relevância do miolo, O Jogo da Imitação não oculta a homossexualidade de Turing, apenas não faz dela o foco principal da narrativa. Assim, é louvável a sutileza de Tyldum na sua abordagem (de mero detalhe) e acertada a decisão de não se deixar seduzir pela especulação em torno da conturbada (e polêmica!) causa mortis do gênio britânico salvador da pátria. Passa longe de ser um filme definitivo do cientista inglês, o roteiro deixa muitas questões em aberto (nada sabemos de sua origem), mas, dentro da síntese que propõe e com seu expressivo elenco e ótima direção de arte (a Christophe é demais), é um bom programa para quem ama e ou odeia questões de matemática (metafóricas ou não!).

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Crítica: Os Pinguins de Madagascar


Uma pergunta que esbraveja: Por que será que no mundo do entretenimento (cinema, hq, teatro), na maioria da vezes, os personagens coadjuvantes (ou vilões) são mais interessantes que os protagonistas  (ou mocinhos)?

É assim, por exemplo, com o Scrat, o alucinado esquilo pré-histórico da franquia A Era do Gelo e com o Capitão, Kovalski, Rico e Recruta que formam o amalucado quarteto de pinguins da trilogia Madagascar e que, desde 2008, estrelam a própria série televisiva. Bem, as aves fofinhas, mas duronas, que aprontam tudo nos curtas animados, agora estão dando o terceiro passo no longa de espionagem Os Pinguins de Madagascar.


A história pastelão começa na Antártica, onde o cineasta alemão Werner Herzog, que agora se dedica ao documentário, filma a marcha anual dos pinguins (referência ao seu doc Encontros no Fim do Mundo) e flagra o encontro dos jovens Capitão, Kovalski e Rico com o Recruta, literalmente na casca do ovo. Prólogo já visto, com outras cenas chaves, nos trailers. Mas ainda sim, provocam sorriso. Tempos depois, após um assalto ao Fort Knox, para resgatar uma preciosidade, nossos heróis caem nos tentáculos de um inimigo que desconheciam, o dupla face ou duplo corpo Dave/Dr. Octavius Brine, que trabalha ensandecidamente num plano para acabar com a fofura dos pinguins..., mas que não conta com a esperteza deles e muito menos com o reforço que vão receber da força-tarefa O Vento do Norte, grupo formado por um Huski Siberiano (Secreto), um Urso (Montanha), uma Coruja (Eva), e uma Foca (Pavio Curto).


Os Pinguins de Madagascar (The Penguins of Madagascar, EUA, 2014), em 3D-IMAX, dirigido por Eric Darnell e Simon J. Smith, é um desenho realmente animado, com muita ação (correria, pancadaria e confusão em Veneza, Saara, Xangai, Nova York) e humor pastelão ao gosto da criançada que acompanha as aventuras surreais do quarteto na tv. Nada muito complicado, mas, às vezes, agitado até demais. Para um acompanhante, o fantasioso roteiro (infantil!) nem sempre funciona e nem todas as piadas são engraçadas. Parte da culpa cabe à versão brasileira e à dublagem, que comprometem o humor absurdo. Algumas gags (trocadilhos infames) se perderam..., mas, ainda sim, dei boas risadas. Ah, é uma “sutileza” da paródia a Herzog, mas a citação ao seu famoso Fitzcarraldo, está aí!


Tecnicamente a animação continua excelente, muito colorida e dinâmica, com seu traço original que dá uma cara de brinquedo de plástico aos personagens. O 3D-IMAX cumpre seu papel vertiginoso nas cenas aéreas. O enredo até joga com o público adulto no tom Missão Impossível, James Bond, Austin Power..., mas sem esquecer de que o seu alvo é realmente a criançada. Excetuando uma crítica velada ao culto à beleza, no subtexto, Os Pinguins de Madagascar, felizmente, não traz mensagens edificantes ou morais, apenas conta uma história boba e divertida. E precisa mais?

domingo, 11 de janeiro de 2015

Crítica: Livre


Para a satisfação dos americanos do norte, e de espectadores carentes em outras partes do mundo, que adoram o gênero autoajuda, Hollywood produz ao menos um “grande” filme por ano, manipulando cirurgicamente o assunto caro ao Oscar (quase certo). Nas tramas “baseadas” e ou inspiradas em fatos há foco para todas as linhas de deficiência (física, mental, religiosa, social, psicológica) com potencial mínimo para chacoalhar o espectador sugestionável. Para a ainda meca do cinema, se bem contada, a história (real) mais trágica pode ser um eficiente entretenimento (fictício).

Livre (Wild, EUA, 2014), com direção de Jean-Marc Vallée e roteiro de Nick Hornby, baseado no livro de memórias de Cheryl Strayed: Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail (lançado no Brasil com o título piegas Livre - A Jornada de uma Mulher em Busca do Recomeço)..., é uma cinebiografia que acompanha a caminhada de 1.100 milhas, pela Pacific Crest Trail (do deserto de Mojave, na Califórnia, até o Estado de Washington, fronteira com o Canadá), nos EUA, empreendida, em 1995, pela jovem Cheryl (Reese Witherspoon), em busca de equilíbrio do corpo e da mente.  


A produção, que equilibra aventura e drama, é uma versão abreviadíssima (e razoavelmente fiel) de uma obra de mais de 400 páginas, inclusive com diálogos idênticos aos da edição brasileira. A narrativa, assim como no livro, alterna o registro de alguns momentos da caminhada com flashbacks (melo)dramáticos que desvelam, em doses homeopáticas, a degradação de Cheryl e a sua amorosa relação com mãe Bobbi (Laura Dern, excepcional)..., razões da catártica viagem da jovem que, entre a psicanálise (numa sala fechada) e a caminhada (ao ar livre) para expurgar todos os (seus) males, optou por fazer (a longa) trilha PCT, apostando no tempo e na paisagem para refletir sobre sua vida. Mas, sabe como é: o tempo não para e a paisagem muda!


A questão da “razoável fidelidade” pode ser uma pedra na bota e, conforme a pisada, incômoda. A jornada de Cheryl, por exemplo, que já tem um ritmo lento no livro, parece mais arrastada e (até) desinteressante na telona, principalmente para quem não é mochileiro. Já as cenas de viagem, em belas (e maquiadas) locações, podem agradar ao leitor que espera por uma versão ilustrada da autobiografia, mas talvez desagrade ao espectador que, desconhecendo o livro, não assimile a “frieza” e o contínuo lamento (justificáveis) da jovem diante de paisagens magníficas. Por outro lado, a consistência do drama familiar (em flashback), principalmente pela tocante interpretação de Dern (roubando todas as cenas), compensa qualquer bocejo. Aqui, sem dúvida, o drama é muito superior a aventura.

Livre é um trail movie que, além das mensagens de superação física e moral, ensina a preparar uma mochila, a escolher um bom calçado (de marca!), a blefar quando se sentir em perigo..., enfim, um manual de sobrevivência para trilheiros inexperientes mas determinados. Talvez sirva, também, de estímulo ao espectador sedentário, já que, mesmo sugerindo o clima do clássico Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), de John Boorman e do inquietante Na Natureza Selvagem (Into The Wild, 2007), de Sean Penn, faz a viagem de Cheryl, pela costa oeste dos EUA, parecer menos ameaçadora do que no livro e do que talvez seja realmente. Agora, se após a sessão algum espectador (problemático ou não) vai realmente querer se aventurar a pé numa jornada de autoconhecimento ou meramente esportiva, nem que seja pelo Caminho de São Tiago e ou pelo Caminho da Fé para Aparecida, aí é outro atalho!


Versões cinematográficas de histórias baseadas e ou inspiradas em fatos, por “serem” muito “pessoais”, podem tocar o espectador pela familiaridade com o assunto ou lhe dizer absolutamente nada. Também porque, sem entrar no mérito do egocentrismo literário (autobiografia, autoajuda), não é todo best-seller que resulta num bom filme. O mundo está cheio de histórias (reais) que são muito mais empolgantes que a grande maioria das hollywoodianas e que jamais chegarão às telas de cinema e ou aos livros. Se bem que, se elas chegassem às telas, o abundante recheio de clichês, pieguice, manipulação emocional, as tornariam também inócuas.

Andar e só andar me parece pouco para se comungar com a natureza e rever conceitos de vida. Mas cada um sabe do suor necessário para expiar a sua dor.

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