domingo, 7 de setembro de 2014

Crítica: O Doador de Memórias


Quando do lançamento cinematográfico de Divergente (2014), de Neil Burger, baseado na trilogia homônima (2011/2013) da escritora Veronica Roth, escrevi: “Utopia distópica e ou distopia utópica é um assunto perturbador e recorrente na ficção científica. Quando bem desenvolvido, na literatura ou no cinema, pode resultar em acalorada e reflexiva discussão. No entanto, parece que os novos autores não querem saber de lição de casa: ler ou ver os mestres do gênero que trataram do tema. Como o passado não parece ser de interesse de quem projeta literariamente ou cinematograficamente o futuro, e o leitor ou espectador infantojuvenil está mais interessado na aventura romanceada no caos do que na reflexão do caos..., o que vier é lucro para editores e produtores.” 

Falava da nova onda de filmes que trata superficialmente do assunto (distopia) numa linguagem juvenil, e que já havia trazido o blockbuster Jogos Vorazes (2012), de Gary Toss, baseado na trilogia homônima (2008/2010) de Suzanne Collins. Até então não conhecia O Doador de Memórias, o premiado livro de Lois Lowry, lançado em 1993, que certamente serviu de referência para os best-sellers posteriores das outras duas autoras. Desde o seu lançamento, o ator Jeff Bridges tentou em vão adaptá-lo para o cinema, reservando para seu pai Lloyd Bridges (1913-1998), o papel do Doador, que agora lhe coube. O que explica, mas não justifica totalmente, porque a versão dirigida por Phillip Noyce, que chega aos cinemas vinte anos depois, tem um ar meio de história já vista.


É impossível não se lembrar de Divergente (que escrito depois chegou antes ao cinema), e ou ficar alheio aos resquícios de obras anteriores, na literatura: Admirável Mundo Novo (1932), Aldous Huxley, 1984 (1949) de George Orwell, Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury..., e no cinema: THX 1138 (1971), de George Lucas, e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), de Charlie Kaufman/Michel Gondry. Sequências mais lúdicas podem também remeter ao “Rosebud” de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles e ao “vermelho” de Pleasantville (A Vida em Preto e Branco, 1998), de Gary Ross.

Toda via distópica tem a mesma raiz: controle de distúrbios. Lenga-lenga de todo déspota que, em troca de sua magnânima proteção e do nirvana, anula (esteriliza) o cidadão, suprimindo as suas necessidades (sociais) básicas. O equilíbrio compulsório (individual e coletivo), a harmonia forçada, como a minoria (rebelde) sabe, dura até o primeiro chute no calcanhar. O que nem sempre satisfaz a turba mentecapta acomodada ao jugo. Como a que habita a Comunidade, um agrupamento de “pessoas” (sobreviventes de um conflito global) localizado num platô (?), cuja fronteira é o vazio e um vislumbre de Alhures.


Ali, sob o comando da (holográfica) Anciã-Chefe (Meryl Streep), para não se repetir os erros do passado, proíbe-se o passado. Ou melhor, proíbe-se toda e qualquer lembrança do passado existente até o “surgimento” da estéril Comunidade, onde humanos e vegetais vegetam impassíveis, sem a presença de animais (irracionais!) para perturbar a ordem emocional. O único vislumbre da vida anterior na Terra é acessível apenas ao velho Doador de Memórias (Jeff Bridges) e ao seu aprendiz Jonas (Brenton Thwaites), um adolescente de 16 anos que tem a Capacidade de Ver Além e que, ao conhecer o que está oculto no admirável mundo novo da Comunidade, passa a questionar o porquê das proibições impostas pelo Comitê de Anciãos etc....

Como O Doador de Memórias me pareceu, por vezes, aborrecido, com seu roteiro um tanto simplório e sem muita convicção, decidi conferir o premiado livro. O drama literário (superior à versão cinematográfica!) é breve, de fácil leitura, e tem alguma originalidade no relato tão absurdo quanto reflexivo de uma população que (num futuro indistinto) opta literalmente por uma vida em preto e branco: (...) Houve um tempo, aliás, em que a pele tinha muitas cores diferentes. (...). Hoje em dia a pele de todos é a mesma... (...) Nosso povo fez essa opção... (...) Antes do meu tempo, antes do tempo anterior ao meu, muito tempo atrás. Desistimos das cores quando desistimos do sol e acabamos com as diferenças. (...) Adquirimos controle sobre muitas coisas. Mas tivemos de abrir mão de outras.” Só não é dito como conseguiram tal (e)feito (psicológico?) de anular a cor da pele e de tudo mais, de dessensibilizar a população e de controlar o tempo (sempre ameno), além de “apagar” o sol, a lua, as estrelas e mesmo assim “usufruir” do dia e da noite. 


Assim como no livro, boa parte da narrativa é filmada em preto e branco (com nuances de cinza e sépia e, às vezes, uma corzinha vazada). A cor, por vezes saturada, aparece no despertar das memórias para Jonas e, claro (coisa que nunca entendi!), duplamente para o espectador. Quem tiver bons olhos verá outras infiltrações. A ideia de que, para se evitar o racismo (e outros “ismos”), o Comitê de Anciãos optou pela eugenia ariana (nazista?), apostando em uma sociedade formada só por gente de cor branca (geneticamente alterada) é curiosa. Mas, o que poderia dar pano pra muita manga, não se sustém na sua bizarrice, Faltam contrapontos para aprofundar uma saudável e colorida discussão étnica e ética. Como dizia o bordão de um velho programa televisivo no Brasil: Porque sim não é resposta!

Contradições e ou controvérsias à parte (nas duas obras), fragmentos de documentários e de noticiários inseridos na trama enriquecem a leitura cinematográfica..., mas suscita outro questionamento: por que as antiquíssimas memórias do Doador não vão além de um século atrás, se ele detém toda a memória do mundo? Será por conta da memória curta do público-alvo juvenil? Será também por causa desse espectador jovem que os roteiristas Robert Weide e Michael Mitnick fizeram uma adaptação equivocada do livro de Lowry, transformando uma novela seca e reflexiva (protagonizada por um inocente garoto de 12 anos) em um (insípido) melodrama (protagonizado por um romântico garoto de 16 anos)? Parece que sim e, como sempre no plano das releituras, mudanças piegas desnecessárias.


O Doador de Memórias (The Giver, EUA, 2014), com mais diferenças do que pontos em comum com o livro, é irregular, mas não é de todo descartável. Além do bom elenco, tem lá seus momentos de interesse e belas sequências (eu dispensaria os valores religiosos em ambos). É evidente que filmado tal e qual seria muito melhor. Mas aí resultaria em um cinema mais independente e possivelmente (?) menos comercial (?). Se servir de consolo, um adulto que não conseguir pegar carona na história pode divagar nas metáforas e ou analogias (conscientes?): da maçã; da árvore em Alhures; do vazio; do Gabriel, do Jonas, do preto e branco... Ah, nem é preciso dizer porque o onipresente Morgan Freeman não está no elenco, não é?

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