sexta-feira, 25 de abril de 2014

Cinema e Literatura: Ravel Giordano Paz


Conheci Ravel Giordano Paz aqui no Claque ou Claquete. Ele apareceu para ler minhas críticas, comentou, deixou endereço do seu site: Arquivos Críticos. Retribui visitas e comentários. E a web-amizade nasceu daí. Não poderia perder a oportunidade de disponibilizar esta surpreendente entrevista do inquietante organizador de A Indústria Radical - Leituras de Cinema como Arte-Inquietação, concedida a Ademir Luiz (*).

RAVEL GIORDANO PAZ
um radical do cinema e da literatura

Doutor em Letras e pós-doutor em Teoria Narrativa, Ravel Giordano Paz analisa a indústria cinematográfica atual, a importância da obra de Machado de Assis e Chico Buarque, a “crítica profissional” de Wilson Martins e as desleituras de Harold Bloom.

Ravel Giordano de Lima Faria Paz é professor da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e autor do livro Serenidade e Fúria: o Sublime Assismachadiano, lançado pela Editora Nankin. Mestre em Teoria e História da Literatura pela Universidade Estadual de Campinas, na qual estudou os dois primeiros romances de Chico Buarque, Estorvo e Benjamim, doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo, onde realizou uma aproximação contrastiva entre Machado de Assis e Almeida Garrett, e pós-doutor pela Unicamp, onde pesquisou afinidades, diferenças e conflitos ideológicos das proposições de Bakhtin e Derrida relacionadas à teoria da narrativa. Justamente com o professor Fabio Akcelrud Durão, da Unicamp, organizou o livro A Indústria Radical - Leituras de Cinema como Arte-Inquietação, lançado recentemente pela Editora Nankin, que reúne 15 artigos sobre a indústria cinematográfica, abordando desde o cinema clássico, com textos sobre Cidadão Ka­ne e Terra em Transe, até a Saga Star Wars e o cult alternativo Pink Flamingos. Nesta en­trevista Ravel fala sobre cinema, literatura, a resistência da crítica literária quanto a Chico Buarque e as desleituras de Harold Bloom.


Ademir Luiz: Por que a indústria do cinema é uma indústria radical?

Ravel: Penso no cinema como uma indústria radical no sentido de uma indústria em que, não obstante o peso inegável das demandas econômicas, também as demandas artísticas dos criadores valem alguma coisa, em graus variáveis, mas que não raro — ainda que minoritariamente — chegam ao nível de radicalidade ético-estética (dois conceitos, a meu ver, indissociáveis) das grandes obras de arte. E essa radicalidade se acentua por um dado estrutural a meu ver intrínseco à forma fílmica, que é sua espécie de destinação ao real: por mais surreal, inverossímil ou amalucado que um filme seja, é sempre um naco da realidade que uma tomada de câmera apreende. Essa “destinação” é tão efetiva que mesmo na era da computação gráfica, quando de certa forma se torna possível escapar a ela, sua força não diminuiu: vide, por exemplo, Avatar e Expresso Polar. Pode-se argumentar que isso tem a ver simplesmente com a hegemonia das formas narrativas (em detrimento, no caso, do “cinema de poesia”, para usar a expressão de Pasolini) num mundo orientado pela racionalidade instrumental, mas também é preciso notar que as próprias técnicas que possibilitaram o desenvolvimento da indústria cinematográfica são frutos desse mundo. Ou seja, o cinema é uma arte (e indústria) radicalmente vinculada às bases materiais do mundo moderno.

AL: Muitos dos intelectuais contemporâneos passaram a citar filmes no lugar de literatura ou obras filosóficas, como forma de embasar suas reflexões. Como interpretar essa tendência? O italiano Giovanni Sartori está certo quando afirma que o homo sapiens está se tornando homo videns? Essa guinada para o audiovisual atrapalha ou banaliza a reflexão? 

Ravel: Penso que essa tendência é salutar até certo ponto. É natural, inevitável e mesmo indispensável que os objetos audiovisuais se incorporem aos processos reflexivos e autorreflexivos num mundo onde eles ganham uma preeminência cada vez maior. Mas o distanciamento crítico é igualmente indispensável, e nesse sentido outros aportes são fundamentais; sem falar nos riscos de superficialidade, como a que se verifica, por exemplo, na reflexão de Néstor García Canclini. Quanto à assertiva de Sartori, pelo que entendi dela, se refere a um tipo de transformação antropológica, senão biológica. Não me sinto habilitado a considerar as coisas desse ponto de vista, mas, se posso emitir uma opinião, diria que não me parece que os processos cognitivos tradicionais estejam sendo substituídos por um tipo de pensamento mais imagético, e muito menos um pensamento que dispense ou mesmo desloque a importância da linguagem verbal. Em suma, parece-me que há um bocado de exagero, talvez uma ânsia de instituir novos conceitos, na afirmação de Sartori.


AL: Seu artigo no livro reflete sobre O Anticristo, filme de Lars Von Trier. É uma obra repleta de simbolismos eruditos e de conceitos psicanalíticos, como bem de­mons­trou em seu texto. Porém, tive uma experiência com O An­ticristo que me deixou perplexo. Na sessão de cinema em que o assisti, as pessoas riam nas cenas teoricamente mais pesadas, como no início no qual há sexo explícito e na longa sequência de tortura do personagem de Willem Dafoe. Como explicar isso? Devemos apelar para o chavão de que existe cinema pipoca e cinema de arte, inacessível para as massas? O riso foi uma espécie de defesa contra o impacto que essas cenas deveriam produzir?  

Ravel: As duas respostas são válidas e complementares mas ainda assim insuficientes. Em relação à primeira, mesmo acreditando ser necessário relativizar de diversas formas e por diversos motivos a oposição entre “cinema pipoca” e cinema de arte (o professor Ramiro Giroldo, da UFMS, lembra que todo filme contém elementos artísticos), penso ser natural que um público afeito ao primeiro tenha certa dificuldade de acompanhar filmes herméticos como O Anticristo. E o tipo de função defensiva que você cita também existe, sem dúvida, ainda que a níveis inconscientes ou quase. No entanto, minha experiência como espectador de plateias, e não só de objetos estéticos, me ensinou a tentar extrair dessas reações supostamente incongruentes algo de valioso a respeito dos próprios objetos. Nesse caso, a lição é simples: ao flertar com gêneros e códigos do cinema de massa, como a pornografia e o terror, Trier se expõe a avaliações calcadas na familiaridade com esses códigos. E o que se verifica aí é algo curioso, mas até certo ponto previsível: que, muito embora efetiva, a radicalidade ético-estética do diretor dinamarquês não faz frente ao tipo de “radicalidade”, digamos, mais mundana e estereotipada desses códigos. Creio que a situação é mais perceptível no caso do recente Ninfomaníaca. Ainda não vi a versão sem cortes, mas suponho que, em termos de “radicalidade pornográfica”, mesmo ela passe longe, por exemplo, da ultra exposição acintosa a que os filmes propriamente pornográficos submetem o corpo feminino. Note-se que não se trata de fazer o elogio de “radicalidades” desse tipo (que eu insisto em grafar entre aspas), mas de reconhecer um limite: o dito cinema de arte ainda paga certo tributo ao moralismo pequeno-burguês... Aliás, é no interior dos padrões culturais estabelecidos, e numa certa “negociação” com eles, que mesmo os filmes mais radicais produzem suas problematizações ético-estéticas. Nesse sentindo, mensurando histórica e “proporcionalmente” essa dialética com os padrões morais, parece-me que é ainda Pasolini, pelo menos entre os cineastas mais conhecidos, quem foi mais longe.

AL: O sr. é especialista em teoria, história e em estudos comparados de Literatura. Qual sua perspectiva acerca da questão da adaptação cinematografia de obras literárias? O que caracteriza uma boa adaptação? A fidelidade? Ou o contrário, a possibilidade de partir do livro para criar uma obra cinematográfica independente? É possível dar exemplos de adaptações que se aproximaram do ideal?

Ravel: Acho que existem muitos exemplos interessantes de adaptação cinematográfica, mas nenhum que se paute por uma fidelidade stricto sensu. Nem sei, aliás, se esse termo, “adaptação”, vale para todos os casos. Tome-se, por exem­plo, a filmagem de Espe­rando Godot, por Michael Lin­dsay-Hogg, em que as marcações cênicas de Beckett são “violadas” em função de estratégias de composição e significação especificamente cinematográficas, e uma obra-prima como O Ciúme, de Godard, que ressignifica inteiramente o “original” de Alberto Mo­ravia. Apenas no primeiro caso, a meu ver, se pode falar em adaptação, que nesse caso consistiria numa transposição de linguagens, mas mesmo essa transposição implica necessariamente em modificação. Ainda assim, são exemplos que se situam em extremos opostos, e entre eles é possível localizar infinitos casos intermediários. Por exemplo as adaptações (também nesses casos o termo me parece válido) de Drácula, por Francis Ford Coppola, ou de Frankenstein, por Kenneth Branagh, que buscam certa “fidelidade” aos “originais” mas também acrescentam outros elementos. E há casos ainda mais extremos que o de “O Ciúme, como o de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, que teria sido inspirado - mas não mais do que isso - em Grande Sertão: Veredas. São possibilidades igualmente válidas e interessantes. Problemático, a meu ver, é a obsessão por recriar inteiramente os “sentidos originais”, que só pode resultar num engessamento da potência formal cinematográfica. No mais, eu não daria exemplos de adaptações ideais, no máximo citaria minhas adaptações ou recriações preferidas. Dentre elas me lembro, agora, dos já citados O Ciúme e Drácula, Moby Dick, de John Huston, 2001, de Stanley Kubrick e, para citar uma obra nacional, Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, sobre a qual publiquei um texto há alguns anos.


AL: O sr. estudou os dois primeiros romances de Chico Buarque no mestrado. Tanto Estorvo quanto Benjamim, além de Budapeste, já foram adaptados para o cinema. Qual sua opinião acerca dessas adaptações?

Ravel: Vi a adaptação de Estorvo, por Ruy Guerra, há muito tempo, e fiquei com a impressão que ela peca por um vanguardismo que esvazia elementos importantes do livro, sem oferecer outros que o compensem. O romance, na mi­nha leitura, se constrói numa dicotomia entre um mundo de simulacros e uma realidade nua e crua que invade o primeiro e expõe suas contradições, além da unidade entre ambos, fundada no capital. Tive a impressão de que aquele primeiro plano, de uma realidade elitista e simulacrizada, praticamente se desvanece no estilo ultracinemanovista do filme. Mas essa é uma impressão antiga, formada num momento em que meu contato com o romance era muito intenso (estava em plena escrita da dissertação), e que — pensando no que eu mesmo disse sobre a questão das adaptações — provavelmente desconsidera os valores intrínsecos do filme. Sem dúvida ele tem uma força construtiva, mas eu preciso revê-lo para tentar sopesá-la. Em relação ao Ben­jamim, de Monique Ganderberg, a minha impressão foi de que também houve um tipo de esvaziamento em relação ao alcance temático do livro, mas quase no sentido oposto ao do filme de Ruy Guerra, no sentido de que a afetação da câmera e mesmo dos diálogos se atém ao universo do simulacro que também está em pauta aí. Mas é um belo filme, com atuações muito sensíveis. De qualquer forma, nos dois casos eu tenho certa dificuldade de me desprender dos “originais” para formular uma avaliação mais equânime.

AL: O crítico Wilson Martins definiu Chico Buarque como um “literato amador” e justificou seu sucesso comercial em função do fato de que, segundo ele, “o literato amador e o leitor amador são figuras simétricas e complementares da vida intelectual. Nenhum deles tem na literatura o seu interesse predominante: um escreve por vaidade, o outro lê por desafio”. Esse julgamento é justo? A literatura de Chico Buarque sobrevive sem a fama do cantor e compositor?

Ravel: Pois é, eu discuti essa posição, e outras, semelhantes, como a de Diogo Mainardi, em minha dissertação. Primeiro, quero dizer que considero Wilson Martins um péssimo crítico profissional, e acho que tanto em crítica quanto em criação literária um status como esse, “profissional”, não diz muita coisa. Muitos “leitores amadores” são mais argutos e sensíveis que muitos críticos profissionais. Quanto à obra literária de Chico, realmente não sei se ela integrará ou deveria integrar algo como um cânone definitivo da literatura brasileira, se algo assim pudesse existir. Sem considerar, aqui, os trabalhos de teatro e os próprios discos e canções (que são obras literomusicais), penso que seus romances constituem uma contribuição valiosa. Todos têm certo grau de profundidade e o mérito, parece-me - com a possível exceção de Estorvo -, de prender o leitor comum. Certamente eles teriam muito menos leitores se não fossem obras de quem são, mas isso não elimina seus méritos. Exige, talvez, uma maior vigilância crítica, mas tanto no sentido do elogio quanto de reações ressentidas como as de Wilson e Mainardi. 

AL: Retomando a questão das adaptações cinematográficas de obras literárias. Seu doutorado abordou a obra de Machado de Assis, colocando-a em contraste com a de Almeida Garrett. Alguma adaptação para o audiovisual realizada a partir de Machado de Assis lhe agradou? Por exemplo, a minissérie Capitu produzida pela Globo, a despeito de ser visualmente rica, em minha opinião, traiu o espírito do romance, transformando-o numa farsa. O que o sr. achou?

Ravel: Lembro-me de já termos discutido sua leitura de Capitu, de Luiz Fernando Carvalho. Acho que você tem razão, mas gosto da minissérie mesmo assim. O espírito farsesco é proposital e também pode ser tomado em sentido positivo, não obstante o evidente esvaziamento da tensão social do romance, pois nesse caso há elementos compensadores e que encontram certa justificativa no âmbito da proposta. As inserções de imagens e músicas contemporâneas, por exemplo, penso que têm relação com o deslocamento do foco - ou melhor, do espírito da narrativa - da casmurrice de Bentinho para a jovialidade de Capitu. Mas é claro que há muito o que considerar aí. Carvalho embarca numa canoa que cedo ou tarde vai começar a fazer água, se é que já não começou, e cujo grande problema é justamente aquele esvaziamento em função de uma leitura feminista. O fato, porém, é que Machado é um autor difícil de adaptar, e Carvalho tentou responder à sua maneira a essa dificuldade. Penso que a adaptação “atualizadora” de Quincas Borba, por Roberto Santos, é muito mais infeliz, e resulta muito mais antiquada que o romance de Machado. Já Sérgio Bianchi conseguiu “atualizar”, ou melhor, recontextualizar a força de A Causa Secreta graças ao trabalho com a metalinguagem. Sobre esse filme, aliás, há um belo texto em A Indústria Radical, do professor Antônio Manoel Santos Silva. Memórias Póstumas, de André Koltzel, é um filme bem feito mas que também opera um esvaziamento semântico, tornando Brás Cubas um paspalhão divertido, a meu ver sem compensação significativa para isso. Já o Brás Cubas, de Júlio Bressane, é um de meus filmes preferidos, que aliás poderia constar da lista que fiz há pouco. Acho que Bressane incorporou o espírito, digamos, avant avant garde de Machado para reconstruir seu texto de forma inteiramente nova, acrescentando outros elementos às tensões sociais do romance, e não esvaziando-as.


AL: Harold Bloom incluiu Machado de Assis no livro Gênio, afirmando que ele foi uma “espécie de milagre”, por ter conseguido construir sua obra mesmo tendo nascido em um país periférico, sendo mestiço em tempos de escravidão e epilético. É possível articular essa leitura com a perspectiva materialista que Roberto Schwarz desenvolveu acerca do mesmo problema em Um Mestre na Periferia do Capitalismo?

Ravel: A princípio, penso que não. São perspectivas opostas, e, nesse caso, fico com Roberto Schwarz: as condições de possibilidade da obra de Machado têm a ver com a condição periférica de nosso capitalismo e com as condições específicas de nascimento e criação do escritor, além de sua posição singular, em certo sentido muito oportuna, no contexto literário da época. Além disso, a qualidade das obras machadianas se constituiu paulatinamente, à custa de muito esforço, muita leitura e muito exercício de escrita e reescrita. E veja que minha leitura da obra de Machado se dá a partir do sublime romântico, sendo que a noção de gênio é fundamental no romantismo. Talvez eu possa relativizar o viés materialista de minha resposta e, pensando não na noção de milagre, mas de gênio, sugerir que certo arrebatamento e certa consciência, aliás, não só consciência como a busca de certa elevação (retórica e temática) são fundamentais na construção dessa obra. Aliás, o que eu busco demonstrar em meu trabalho é como a busca de uma sublimidade de fonte e temas românticos nos primeiríssimos escritos de Machado pode ser vista como uma base para os voos mais altos dos grandes contos e romances, onde uma dialética de sublimidade e antissublimidade extrema é fundamental, não se furtando a movimento de sínteses como o que chamo de um “sublime doméstico”, mas também catalisando representações verdadeiramente paradoxais, que investem certas figuras e narrativas de Machado de uma radicalidade ainda contemporânea. Enfim, com as devidas precauções pode-se talvez falar em um “gênio”, mas não em um “milagre” machadiano. Por outro lado, é verdade que o “fenômeno” Machado de Assis surpreende. Não só a qualidade como o volume de sua obra são muito grandes, ainda mais em se tratando de um funcionário público zeloso como ele foi. Mas suas condições de nascimento e sua situação social de certa forma ajudam a explicar isso. Com o perdão do psicologismo raso, creio que Machado não seria o grande escritor que é se não tivesse as “manhas” de um filho da escravidão: a humildade de quem viveu, ainda que indiretamente, o jugo da opressão e, ao mesmo tempo, a consciência cada vez mais segura de seu valor. Desculpe ter saído da esfera de sua pergunta para apresentar minha própria perspectiva sobre Machado.

AL: Em vários círculos acadêmicos o nome de Harold Bloom, possivelmente o crítico literário mais pop da atualidade, é desqualificado. Combatem como redutora e retrógada sua defesa do cânone literário ocidental. Sendo um estudioso de Derrida, uma espécie de nêmesis de Bloom, qual sua opinião sobre isso? Ele é mesmo ultrapassado ou é vítima da patrulha ideológica do que chama de “escola do ressentimento”, onde a filiação ideológica seria mais importante do que o valor estético?

Ravel: Essa é outra situação na qual é preciso bom senso para pôr os pingos nos “is”. Bloom é um grande crítico, sem dúvida. Por mais que sua militância canônica (que, no entanto, ele tem a sabedoria de relativizar em alguns momentos) seja questionável, sua formação teórica e sua bagagem de leitura lhe permitem análises brilhantes. Bloom tem trabalhos de divulgação e, digamos, ostentação intelectual como O Cânone Ocidental e outros mais sólidos. Gosto particularmente dos textos de Poesia e Repressão, embora tenha me atrevido a discutir sua interpretação de um poema de Blake (num artigo publicado na Revista de Estudos Literários da UEMS). Penso que o aproveitamento da desconstrução derridiana por Bloom é um tanto limitado - bem mais, por exemplo, que o de Paul de Man -, mas às vezes ele produz bons frutos. A ideia de desleitura é valiosa, desde que dialetizada por uma perspectiva histórico-social à qual Bloom é fundamentalmente avesso, não obstante o psicologismo que, a rigor, contradiz sua perspectiva pretensamente estética. Quanto à polêmica com os culturalistas, acho que ele é tão vítima quanto culpado, existe aí uma guerra de trincheiras marcada pela incompreensão e, aliás, ressentimentos mútuos. Isso é parte do processo, é claro, mas é preciso que o processo ande... As limitações do culturalismo são efetivas, e por vezes redundam em coisas completamente desastrosas, mas ele coloca em pauta questões importantes. Entre elas algo que a crítica marxista também postula, e nem sempre das melhores formas, que é a indissociabilidade do estético e do ideológico. É uma questão realmente complexa, e o esteticismo de Bloom também não me parece a melhor forma de encará-la. Quanto à questão do cânone em si mesma, acho que ela é tão problemática quanto válida. Fixar ou propor cânones pode parecer retrógrado mas ainda é necessário, e talvez só deixe de ser se um dia chegarmos à “verdadeira humanidade” preconizada por Marx, quando todos serão artistas... Então alguém precisa fazer isso: selecionar o que merece ser lido, ainda que às custas de controvérsias. E Bloom tem coragem de correr esse risco, de dar a cara a tapa.

AL: Ainda importa se Capitu é culpada ou não?

Ravel: Não, definitivamente não... Mas bem que pode ser - o Bentinho bem que merece, hahaha...


Ademir Luiz é doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais. É autor de Hirudo medicinallis - carta aberta de um vampiro de brinquedo ao espectro de Orson Welles (romance); Pequenas estórias da grande história (contos); Arquivo de heresias (ensaios). 

Ilustrações: foto-arte de Joba Tridente sobre foto de Rosa Maria Santos.

domingo, 20 de abril de 2014

Crítica: O Espetacular Homem-Aranha 2 - A Ameaça de Electro


Desde que os heróis, super-heróis e vilões foram obrigados a dobrar o turno de trabalho, se dividindo entre aventuras nas hqs e graphic novels e aventuras nas telonas de cinema, a vida e a personalidade destes personagens não tem sido mais a mesma. Quer dizer, não que vivessem na mesmice de página a página, de revista a revista, antes da lucrativa migração (quase em massa) para o cinema. Muito pelo contrário, ainda ao largo das salas de cinema essa gente já vagava meio tonta no mundo da ficção, à mercê de roteiristas e desenhistas variados e até avariados. Já tiveram as suas vidas revistas e truncadas e trocadas e foram mortos e ressuscitados. Agora, para não deitar num divã kafkiano e discutir transtorno bipolar (ou polipolar), passaram a “aceitar” qualquer papel, nas revistinhas ou nos cinemões. É claro que não se sentem à vontade em todas as interpretações..., mas, para não criar clima com o “patrão”, deixam a aventura os levar...

Amante de quadrinhos, já me desgastei mais que os personagens, ao vê-los irreconhecíveis em produções cinematográficas medíocres. Hoje, já que na ficção ou se pega a onda ou se toma caldo, faço como eles, deixo a história (inverossímil ou não) me levar. Ultimamente tenho me surpreendido como o nível (cinematográfico) delas que, mesmo com roteiros pouco inspirados, resultam em filmes-hq, no mínimo, divertidos.


Na retomada das aventuras do Homem-Aranha, após a irregular trilogia (2002/2007) de Sam Raimi, havia muita expectativa em relação à direção de Marc Webb, que vinha do fascinante 500 Dias Com Ela (2009) e ao protagonista, o desengonçado Andrew Garfield, que herdou a teia de Tobey Maguire (o ainda favorito de muitos fãs). Bem, O Espetacular Homem Aranha (2012), que, além do “espetacular” do título, especulava sobre os misteriosos pais de Peter Parker e trazia Gwen Stacy (a linda Emma Stone), a primeira namorada do cabeça de teia, acabou agradando. Mas ainda pairava uma dúvida sobre a fidelidade à versão clássica dos quadrinhos que narra o tumultuado e dramático romance de Peter e Gwen. O diretor e seu roteiristas pensariam primeiro nos leitores das hqs e ou nos espectadores? A resposta está no O Espetacular Homem-Aranha 2: A Ameaça de Electro (The Amazing Spider-Man 2, EUA, 2014).

A vida do adolescente super-herói aracnídeo não está fácil. Com seus grandes poderes as suas responsabilidades só fazem aumentar: proteger inocentes antes de caçar bandidos; descobrir a verdade sobre seus pais; se livrar do fantasma do Capitão Stacy (Denis Leary), que não quer a filha Gwen envolvida com ele; arranjar um tempinho para namorar ou se afastar de vez de Gwen Stacy; dar atenção ao antigo amigo Harry Osborn (Dane DeHaan); ouvir e enfrentar o mal-amado Max Dillon/Electro (Jamie Foxx); responder satisfatoriamente aos questionamentos da Tia May (Sally Field); ficar de olho na OsCorp; implicar (até) com trilha sonora durante a luta com um vilão..., ufa, que roteiro! Haja energia e bom humor!


Assim como o filme anterior, O Espetacular Homem Aranha 2 é uma típica história de gibi ou pouco mais que isso: uma graphic novel. O que começou no primeiro capítulo continua aqui com muita adrenalina e humor e vai se arrastar por mais uns dois episódios, com certeza. O que era mera referência, uma nota de pé de tela relacionada ao misterioso Richard Parker (Campbell Scott), pai de Peter, ganha longa e plausível explicação. Obviamente que algumas alusões, principalmente as citadas no epílogo-prólogo, sobre amigos e paixões e vilões (tem um punhado deles esperando a hora de entrar em cena, desmascarar Parker e enfrentar o Aranha), estarão plenamente justificadas no OEHA3. É claro que com muita destruição nas perseguições aéreas e terrestres.

Fala-se um bocado da fábrica de vilões da Marvel, que basta um sujeito e um acidente qualquer: choque elétrico, picada, raio, soro..., para surgir um vilão louco para derrotar o Homem-Aranha e dominar o mundo. Geralmente o tal “vilão de ocasião” é uma pessoa mal-amada, rejeitada pela família e seus pares, vítima de bulliyng..., e que em situação extrema, acuado, desperta aquela persona raivosa que todos nós escondemos fundo, com toda a carga de traumas passados, e começa a agir como se todo mundo fosse responsável pela sua dor. Se pudesse citar Arthur Schopenhauer (em Dores do Mundo), talvez dissesse que “O mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores.”


De volta à fábrica de vilões, no campo da ficção científica quem não dá asas à imaginação vai divergir (ôps!) e muito dos outros universos. E se tantas “bobagens” de ontem, nas páginas de “livros visionários”, hoje são realidades, como a impressora 3D..., por que não um monstrengo (se é que ainda não existe)? Basta um tilt na engenharia (manipulação) genética ou o voto num “palerma” e... Mas aí já é espetacular, digo, especular demais.

Ironias à parte, alguns vilões Marvel até parecem produtos da “acne”: doidos de pedra e sempre com um calcanhar de Aquiles pronto para ser alvejado (nada fatal, evidentemente). Até aqueles que parecem malvadões perfeitos têm um parafuso a menos. E aí, no pega e soca e prende no arrasto, o Aracnídeo sempre acaba ganhando o dia. Não porque tenha mais ferramentas além da teia, mas porque é mais esperto e mais ágil. Está no script: vilão que é vilão sempre volta depois (para completar a vingança) e herói que é herói sempre o espera (para derrotá-lo novamente).


Em O Espetacular Homem-Aranha 2, como o título brasileiro (infelizmente) entrega, a ameaça vem de Electro, um cidadão  pacato (Max) vítima de dois acidentes: o desamor (que gera a invisibilidade) e o científico (que gera a celebridade). Nos dois casos o preço é alto, já que nem todo zé-ninguém deixa de ser um zé-ninguém só porque ficou famoso ou é amado só porque deixou de ser um zé-ninguém.  Já dizia John Lennon na linda Nobody Loves You When You're Down And Out: Nobody loves you when you're down and out/ Nobody sees you when you're on cloud nine/ Everybody's hustlin' for a buck and a dime (...) Well I get up in the morning and I'm looking in the mirror to see, ooo wee!/ Then I'm lying in the darkness and I know I can't get to sleep, ooo wee!/ Nobody loves you when you're old and grey/ Nobody needs you when you're upside down/ Everybody's hollerin' 'bout their own birthday/ Everybody loves you when you're six foot in the ground. Amar alguém que está sempre mal na fita, nem mesmo em canções.

O Espetacular Homem Aranha 2: A Ameaça de Electro é um filme realmente espetacular. O roteiro, mesmo com um furinho ou outro (não vou spoilerar), é consistente e com boa dose de humor. Talvez haja um excesso de assuntos, mas eles vão se acertando na trama e logo o espectador estará encantado com o romance de Peter e Gwen, enredado no maniqueísmo hereditário e incontrolável do solitário Harry Osborn, herdeiro da OsCorp, e, principalmente, comovido com o drama de Electro, cuja carência resulta em pelos menos duas belas e emocionantes sequências (diálogos e imagens) que falam de invisibilidade célebre e celebridade invisível (não há como não torcer por ele, mesmo quando surta).  Dor tão pungente, de um vilão circunstanciado, que eu me lembre, só a do Homem-Areia (Thomas Haden Church), em Homem-Aranha 3 (2007), de Sam Raimi.


Diferente de Christopher Nolan, que fez um primeiro Batman interessante, um segundo Batman razoável e um terceiro Batman bomba, Marc Webb, por enquanto, tem conseguindo manter e melhorar o clima juvenil (de romance e aventura) do filme anterior, sem esquecer que está adaptando personagens de história em quadrinhos. O que não impede da narrativa (com começo, meio e fim) chegar mais consistente na exploração dos dramas e tragédias na vida de Parker. A percepção de que o Homem-Aranha está deixando a adolescência para trás se faz notar brilhantemente na trama de amor e ódio que o enreda a Electro e no simpático (e altruísta?) final de episódio.  O herói está cada vez mais confiante e consciente das suas obrigações.

Enfim, considerando a excelência do elenco, a ação desenfreada (mas com ritmo!), o enredo ousado (e denso), os efeitos especiais de cair o queixo, principalmente as tomadas aéreas em que o espectador salta e voa com o herói - vale economizar para ver em 3D IMAX (não recomendo para quem tem medo de altura), O Espetacular Homem Aranha 2: A Ameaça de Electro é uma boa pedida para quem quiser saborear uma divertida (e por vezes dramática) história do simpático Aracnídeo no Dia do Trabalho (estreia). Bem, pelo menos ele vai trabalhar um bocado para a sua diversão. Ah, não custa lembrar que, em se tratando de filme estadunidense, pancadaria, perseguição e acidentes automobilísticos e tiroteio fazem parte da paisagem (ou da passagem!)...

sábado, 12 de abril de 2014

Crítica: Divergente


Utopia distópica e ou distopia utópica é um assunto perturbador e recorrente na ficção científica. Quando bem desenvolvido, na literatura ou no cinema, pode resultar em acalorada e reflexiva discussão. No entanto, a impressão é a de que os novos autores não querem saber de lição de casa: ler ou ver os mestres do gênero que, com muito mais competência, trataram do tema. Como o passado não parece ser de interesse de quem projeta literariamente ou cinematograficamente o futuro, e o leitor ou espectador infantojuvenil está mais interessado na aventura romanceada no caos (sociopolítico) do que na reflexão do caos (sociopolítico)..., o que vier é lucro para editores e produtores.  A obra da vez é Divergente, da escritora Veronica Roth, na leitura do diretor Neil Burger. Nada mais divergente!

Divergente (Divergent, EUA, 2014), o primeiro de uma série de quatro filmes (Insurgente e Convergente - em duas partes), fala de um mundo devastado por uma guerra onde, em vez de embate com paus e pedras, os sobreviventes estadunidenses, divididos em cinco grupos distintos: Abnegação, Amizade, Audácia, Franqueza, Erudição, e um sem-facção, comungam uma paz calculada no fiel da confiança. Todos sob o governo dos Abnegados (ao menos na aparência).  Vivendo em uma Chicago semidestruída, cercada por muro e torres elétricas, essa gente faccionada pelo DNA, tem a “oportunidade” de, aos 16 anos, mudar de grupo, contrariando o seu DNA-Casta. Porém, (sempre há um porém na esmola demasiada), aquele que não se adaptar ao novo grupo, se tornará um pária (sem-facção).


Beatrice/Tris (Shailene Woodley) é uma abnegada que acredita ter nascido para ser audaciosa, mas um teste de aptidão prova que ela faz parte de uma minoria nascida fora da caixinha. Ou seja, se enquadra em qualquer grupo e em nenhum deles. Em resumo: é uma ameaça ao sistema de cotas. Ao trocar Abnegação por Audácia, a adolescente, que conta com a assistência do reservado treinador Quatro (Theo James), irá descobrir que, numa sociedade em que o fiel da confiança anda desequilibrado, segredos podem ser violados e a audácia subjugada por efeitos colaterais. Ah, a inconstância dos homens!

Divergente é um filme do pouquinho: pouquinho de ação, pouquinho de vilania, pouquinho de aventura, pouquinho de romance rebelde etc..., o suficiente para “prender a atenção” do público alvo adolescente e não incomodar o Tico e o Teco empanturrados de refrigerante e pipoca. Da obra original de Roth, lançada quando ela tinha apenas 21 anos, conheço apenas o que li nas sinopses e não me arrisco a ir além disso (!), para não quebrar o pescoço ao mergulhar na pocinha de água que marola com girinos, sonhando em ser um tsunami. Também porque não quero macular a minha memória afetiva (de clássicos) com literatura aflitiva inspirada nos populares Harry Porter (1997/2007), de J. K. Rowling e Jogos Vorazes (2008/2010), de Suzanne Collins.


Todavia, não parece que só os livros de Veronica carecem de amadurecimento. Burger, que realizou os excelentes O Ilusionista (2006) e Sem Limites (2011), parece ter sido atropelado pelos integrantes jovens da facção Audácia que, enquanto fazem a segurança (?) da cidade, praticam parkour, gritam e correm felizes como se fossem apresentar algum número musical de Jesus Cristo Superstar ou de West Side Story. Só para situar, excetuando os sem-facção, que parecem zumbis, todos os integrantes das outras facções são caracterizados pelo figurino-uniforme e ou alguma expressão-uniforme hereditária. Parece que o diretor, com base no roteiro simplório de Evan Daugherty e Vanessa Taylor, que possivelmente é fiel ao romance simplista..., pensou: - Quer saber? Audácia é energizada demais, vou mesmo é de Abnegação! E foi! Deixou a velha-nova Chicago em meio a fogo cruzado da submissão e da sublevação e o espectador adulto (embasbacado!) à espera de algo realmente novo e não de um arremedo (altruísta) de uma história tola, já vista até mesmo em bobagens pseudocientíficas-politizadas “B”. 

Considerando que em 1997 vi uma inesquecível pérola (sobre eugenia): Gattaca, de Andrew Niccol, um dos melhores sci-fi de todos os tempos, e em 2013 assisti ao ótimo Ender’s Game - O Jogo do Exterminador, de Gavin Hood, que trata do recrutamento de crianças para treinamento em artes da guerra; considerando que me diverti um bocado com as adaptações de Harry Poter e até me surpreendi com os Jogos Vorazes; considerando que os 140 minutos de Divergente parecem 180, que é um “filme pronto” - para adolescente não ter que pensar (só suspirar pelo casal protagonistas!), que o elenco obedece as marcações do diretor (e a maioria deve estar de volta em Insurgente), que a trama é risível na sua redundância (eu também ando cada vez mais redundante)..., é um filme que não disse a que veio, pelo menos ao espectador (cinéfilo) adulto e não-leitor dos livros de Roth, a Veronica, não o Philip.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Crítica: Capitão América 2 - O Soldado Invernal


Em tempos de câmera de vigilância, e-mail de vigilância, twitter de vigilância e outros instrumentos de vigilância ainda não desvelados ou comunicados pelos governos que controlam os meios de comunicação..., e com a Guerra Fria requentando em fogo baixo, toda a paranoia com a segurança no mundo, principalmente nos EUA, é pouca. Um assunto capaz de tirar o sono de qualquer cidadão, até mesmo o de um herói de guerra que renasceu do gelo para um mundo cada vez mais absurdo e tecnológico.

Capitão América 2 - O Soldado Invernal (Captain America: The Winter Soldier, EUA, 2014), com direção de Anthony Russo e Joe Russo e roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely, surpreende com uma trama de espionagem esperta (tipo anos 1970) e muito próxima da realidade: o preço da segurança de alta tecnologia. O Steve Roger que retorna é um sujeito gentil, correto, um capitão ciente de que, em setenta anos que passou congelado, o mundo mudou, mas alguns vícios totalitários (leia-se: genocídio) persistem travestidos de democracia. Todavia, antes de restaurar a ordem mundial, é preciso compreender os sinais da desordem mundial.


Ainda tentando se adaptar à realidade do “novo mundo”, Capitão América (Chris Evans) descobre, após operação de resgate em um navio sequestrado, que os agentes da SHIELD Nick Fury (Samuel L. Jackson) e Alexander Pierce (Robert Redford) estão agindo estranhamente. Ao tentar descobrir a razão é ameaçado e caçado por um Soldado Invernal (Sebastian Stan). Praticamente solitário em seu ideal de uma América que não reconhece e decidido a encontrar a pedra-chave do quebra cabeça que está colocando em risco a sua vida, acaba pedindo ajuda à Viúva Negra (Scarlett Johansson) e ao ex-paraquedista Sam Wilson (Anthony Mackie).

Esta é uma daquelas histórias que quanto menos se souber do enredo, melhor. Ele tem lá as previsibilidades do gênero que um espectador mais esperto pode até adivinhar. Mas, em vez de se preocupar em jogar esse jogo de reviravoltas, o bom é curtir o espetáculo (se puder economizar na pipoca sugiro o 3D IMAX).


Sequência, como todo mundo sabe, é uma incógnita, pode superar o filme anterior e ou enterrar de vez a franquia. Felizmente O Soldado Invernal está na primeira alternativa. E se não chega a superar totalmente o Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), ao menos se equipara, com um roteiro inteligente (acessível a qualquer adolescente), ritmo frenético (a briga no elevador é ótima), cenas de luta primorosamente coreografadas, humor leve, fotografia impecável e um elenco excelente.

Para os mais emotivos, românticos ou sonhadores, que não se contentam com pouco, há ainda duas sequências nostálgicas arrebatadoras: a melancólica visita do herói ao Museu Smithsonian e o seu dramático reencontro com a (agora) velha namorada Peggy Carter (Hayley Atwell). São cenas curtas, um adendo emblemático que melhor traduz o desconforto de Steve Rogers em seu profundo mergulho nacionalista para resgatar a dignidade da sua América a cada dia mais imperialista. Passagens que fazem deste uma das melhores adaptações da Marvel, que garante ter trabalho para sua “linha de heróis” por mais duas décadas. Desde que se mantenha a mesma qualidade, com certeza as futuras aventuras serão bem-vindas. Afinal, sempre haverá um cientista maluco ou um militar maluco ou um governante maluco querendo dominar o mundo..., ou ainda um ET maluco querendo dominar o universo!

NOTA: Há uma cena imperdível nos créditos finais.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Crítica: Noé


A lenda de Noé é uma das mais conhecidas da Bíblia, o livro capital da mitologia judaico-cristã. Já mereceu várias adaptações e versões para o cinema e a tv.  Mas nenhuma tão estranha como a do diretor Darren Aronofsky. Para ele: “- O público pode esperar por todos os grandes momentos da história de Noé: a Arca, os animais, o primeiro arco-íris, a pomba. Mas espero que tenham sido capturados de maneira nova e inesperada. Em vez de repetir o que já foi visto anteriormente, consideramos cuidadosamente o que está escrito no Livro de Gênesis e, depois, criamos um cenário na tela onde achamos que estes milagres poderiam ocorrer”.

Bem, se a primeira impressão é que fica, logo de cara, ao deparar com o figurino estiloso..., homens e mulheres (!) vestindo calças compridas, corte reto (as das mulheres justinhas e enrugadinhas), camisas e casacos modernos, bem costurados e bem chuleados..., o espectador se sente transportado para um filme de ficção científica pós-apocalíptico, onde é comum esse tipo de vestimenta. A roupa, muito bacana, chama mais atenção que a trama, principalmente porque deixa um monte de perguntas sem respostas: Se o errante Noé vivia no deserto com a sua esposa e os três filhos, não tinha ovelhas e nenhuma plantação de algodão, ou sequer uma máquina de fiar, nem contado com a “civilização de homens” (?!), quem desenhava e tecia os tecidos? No princípio do mundo judeu já existia brim, jeans, blusa plissada? Sendo vegetarianos/veganos porque usavam (e onde conseguiam?) arrojadas botas e peças de couro? Empaquei! Ah, melhor seguir com outro assunto.


Noé (Noah, EUA, 2014) é um drama/fantasia de ação e alguma aventura livremente inspirado no personagem bíblico Noé. Aquele homem que, submisso a um Deus tirano, construiu uma arca para salvar a sua família e um casal de cada espécie animal da ira divina, em forma de dilúvio universal, que varreu do planeta o resto dos habitantes..., e depois (incestuosamente?) repovoou a Terra. Com roteiro de Aronofsky e Ari Handel a trama está mais para naufrágio do que para resgate do espectador descrente que vai boiar ou se enterrar com os homens de pedra “emprestados” de O Senhor dos Anéis.  Se no “original” a história (quem conta um conto aumenta um ponto) já é inverossímil, na telona, então...

A trama (previsível, óbvio!) segue a nado cachorrinho. Quando parece que vai engatar, surge uma goteira de água fria. Não estou falando da insuportável onipresente trilha chorosa, mas do enredo pouco inspirado e seus clichês religiosos..., com certeza ao gosto dos “crentes fé cega” e criacionistas. Haja devoção! Tudo se resolve com pedras, ervas e semente mágicas. Ou se justifica com um acampamento de “homens” maus, pecaminosos, ateus..., argh!!! Até mesmo um trabuco (?!) dá o explosivo ar da graça. Outro mistério: onde, no meio do nada, arranjam pólvora e ou forjam armas, correntes, ferramentas? Enfim, não falta nem correção do Gênesis: “Antes dos peixes, foram criados animais enormes (dinossauros?) que desapareceram da Terra”. Eu ouvi isso?!


Noé tem cara de história bíblica para adolescente romântico. Conta com umas duas ou três boas sequências, incluindo aí uns dois ou três bons diálogos, digo, monólogo (de Noé), cujo assunto, é claro, é o embate entre o Deus (tirano) e a sua criação infiel (homens). Pelo menos na hora me pareceram inspirados! Os efeitos especiais beiram o ridículo..., nada de encher os olhos, apenas ilustram o roteiro. O desenho dos homens de pedra e das borradas cenas de batalha é horrível, primário! O elenco acompanha a história: assim assim! Em tempo, como ocidentais (artistas ou não) adoram ocidentalizar os orientais, Noé (Russell Crowe) e família são brancos, bons e bonitos. O “rei” Tubal-Cain (Ray Winstone) e súditos são morenos, malvados e feios.

Um filme na medida para religiosos crédulos e incrédulos estilistas de moda sem inspiração.

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