terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Crítica: A Busca



Segundo a sinopse, a trama do longa A Busca gira em torno de um médico que cai na estrada em busca do filho adolescente desparecido e acaba reencontrando o pai, com quem teria rompido relações..., sugerindo, aí, uma jornada de autoconhecimento. Segundo o filme, a estrada é apenas um meio de se encurtar a distância entre o pai, o filho e o avô.

A Busca começa com um prólogo explorando uma corriqueira (?) discussão em uma família de classe médica, digo, média. Os médicos Theo (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) foram casados por 15 anos e têm um filho, Pedro (Brás Moreau Antunes), pivô da briga. Theo é um típico ex-marido invasivo e pai opressivo. Basta o não comparecimento do filho a uma entrevista de intercâmbio estudantil e uma cadeira enviada de presente pelo avô paterno, para despertar a sua fúria e desvelar que também ele tem (ou teve) problemas paternos. Dias depois, na comemoração dos 15 anos de Pedro (em família e sem convidados?), o ex-casal se dá conta de que o garoto desapareceu e logo fica sabendo que ele fugiu montado em um cavalo. Para não incomodar a polícia, Theo monta em seu possante e sai atrás do garoto...


O filme é um drama(lhão) fragmentado (é claro!), com historietas pouco convincentes e ou provocativas o suficiente para alguma introspecção  (mesmo breve) do protagonista que caiu na estrada tão somente para encontrar o filho fujão (em um cavalo) e não para “receber” alguma lição de vida (ou moral). Por mais que a narrativa force a barra, o motivo condutor é apenas o de encontrar o filho e não a si mesmo. Curvas, desvios e tropeços no caminho, sim, perigo iminente, não! Aliás, as pedras-pistas no caminho servem apenas para se alcançar a metragem (de um longa) ou salientar os tombos da direção e a falta de assunto. Firulas de ilha de edição!

A história do cavalo pode até lembrar aquela do excelente filme espanhol A Dançarina e o Ladrão (2009), mas, se muito, apenas tangencia a sua máxima: La vida és un baile que nunca sabes cómo termina. A estrada por onde viaja o “desesperado” Theo, em busca do filho, é bem outra, talvez mais próxima de À Beira do Caminho (2012). Ao redor do médico o mundo está em ordem, ele é que está fora do tom, como é clichê em qualquer road movie. Mas não é só o personagem que está fora de sintonia com a vida interior (em duplo sentido), Wagner Moura também não parece muito confortável na pele de Theo. Reflexo da mão pesada do diretor Luciano Moura, que se perde nas muitas encruzilhadas do seu próprio roteiro (de viagem) engasgado com diálogos inverossímeis.


A Busca (A Busca, Brasil, 2012) propõe uma viagem redentora do protagonista, que o espectador acompanha com uma expectativa de resgate que não se cumpre. Como nenhum personagem é plenamente desenvolvido, em momento algum o gênio explosivo de Theo e ou a sua animosidade paterna é justificada. Tampouco o roteiro se preocupa em dar alguma profundidade ao título (A Busca) que subsistiu ao A Cadeira do Pai que, excetuando o incidente do prólogo, significa menos ainda. Se é que alguém (a essa altura) se importa.

Para falar a verdade, o drama (raso) que começa com uma discussão e termina com um abração, até tem uma mensagem: Falar ao celular e dirigir, ao mesmo tempo, pode ser fatal. Enfim, quem se sai melhor nessa jornada que se quer transformadora (pelo menos até o terceiro ato rural) é o carro-merchandising que protagoniza situações (em diversos pequenos anúncios subliminares) que até o fabricante duvida. Coadjuvante de estampa, depois de exigido em situações limites (rodar milhares de quilômetros sem beber uma gota de combustível ou carregar carga acima do peso), tem um final pouco lisonjeiro. Será que o fabricante aprovou? Afinal esta é uma viagem que está mais para os desafios de um auto (móvel) do que para um (auto) conhecimento.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Crítica: Hitchcock



Biografia é um gênero controverso seja na literatura ou cinema. Com as tais liberdades poéticas (em nome do ritmo ou do interesse narrativo) há sempre espaço para lapidações e ou exageros de fatos tidos como reais (mesmo que fictícios). Se o sujeito está morto, o verbo deita e rola. Se o sujeito é o autor (de si mesmo) haja ouro para dourar a pílula. Ou seja, há que se acreditar duvidando de qualquer retrato e ou autorretrato. Se bem que, quando a biografia é realmente boa, quem se importa com o que é verdadeiro ou falso na história? Como salienta o cineasta John Ford (1894 - 1973) no seu brilhante O Homem Que Matou o Facínora (1962): "Quando a lenda se torna fato, imprime-se a lenda.

Assim como Lincoln, de Spielberg, o drama Hitchcock (Hitchcock, EUA, 2012) não é uma cinebiografia de Alfred Hitchcock (1899 - 1980). Baseado em Alfred Hitchcock e o Making of Psycho, de Stephen Rebello, o filme “trata” de histórias de bastidores do (e no) set de filmagem de Psicose (1960), mais aos moldes de Sete Dias Com Marilyn (2011). Dirigido por Sacha Gervasi, com roteiro de J. McLaughlin, a trama ainda alfineta, costura e remenda o tumultuado relacionamento de Hitchcock (Anthony Hopkins) e sua mulher Alma Reville (Helen Mirren), aparentemente na berlinda dos “casos amorosos” com as loiras fatais das produções do fogoso (?), genioso e genial diretor. Alma, também seria a eminência parda (ou seria pálida?) por trás dos roteiros de sucesso de Hitch.


Hitchcock traça um perfil curioso e irônico do mestre do suspense que alterna o humor (bipolar?) entre o menino mimado e o psicótico e ou entre o sujeito carente e o autossuficiente. Já Alma ganha um traço mais equilibrado, o de mulher inteligente, que ciente da sua importância na carreira do (dependente) marido fazia vistas grossas (?) às suas fugidinhas. Estranho pacto para sobreviver às intempéries comerciais e amorosas do, então, Éden Hollywoodiano. Época que o cinema faz parecer tão convidativa quanto assustadora no crepúsculo de deuses e deusas tão fugazes quanto hoje.

Hitchcock explora os devaneios do diretor, da pré-produção do thriller Psicose (com a compra de todos os exemplares do livro homônimo de Robert Bloch, para que o espectador não soubesse o final da história) à pós-produção (com a decisiva colaboração de Alma), cujo lançamento levou a plateia à loucura. Na trama há algumas sacadas bem interessantes (processo criativo do diretor), engraçadas, e outras difíceis de acreditar. Anthony Hopkins está bem caraterizado, lembra o velho Hitch e convence no papel do polêmico diretor. O grande mérito da direção é parecer não levar muito a sério a narrativa. O que não deixa de ser uma jogada de mestre, já que planta na cabeça do espectador a dúvida sobre a veracidade de tudo no (e do) “mundinho” que se vê na tela.


É impossível não comparar o drama americano com o britânico telecine The Girl (2012), thriller psicológico que (também) especula a discutível obsessão do diretor por loiras e de seus depravados avanços sexuais, não correspondidos pela atriz Tippi Hedren (Sienna Miller), e a busca da narrativa perfeita, durante as filmagens de Os Pássaros (1963) e de Marnie (1964), que se seguiram à Psicose (1960), em cujos bastidores Hitch teria (também) assediado sexualmente Janet Leigh (Scarlett Johansson). Baseado em Spellbound by Beauty: Alfred Hitchcock and his Leading Ladies, de Donald Spoto, o telecine britânico, dirigido por Julian Jarrold, é muito mais tenso que o drama americano também na caracterização. Vale notar que, quando do lançamento de The Girl, várias atrizes, que teriam sido “vitimas sexuais” de Hitchcock, foram entrevistadas e negaram o ocorrido.

O Hitchcock do filme inglês, interpretado por Toby Jones, “ganhou” um cabeção monstrengo, boca pequena, postura rígida muito da esquisita e perdeu uns quilinhos. Dependendo do ângulo ou do close, a desproporção apavora. Alma (Imelda Staunton) não fica muito atrás. O sombrio casal parece ter saído diretamente de um filme de horror. Quanto à trama, é o tal negócio, se não se conhece o original, deve se duvidar das traduções. O que não quer dizer que não se pode gostar, mesmo duvidando da autenticidade, de um ou de outro ou mesmo dos dois filmes, que mais afrontam do que homenageiam o mestre do suspense, pintado como um voyeur macabro. Diversão garantida para os amantes de cinefofoca de bastidores. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Crítica: O Reino Gelado



A primeira edição de A Rainha da Neve é de 1845. Um dos contos mais longos de Hans Christian Andersen (1805-1875) é também o mais adaptado, reinventado e maltratado no cinema, no teatro, na literatura. Por achar que obra em domínio público não tem dono, cada “coautor” se acha no direito de “melhorar” o quê não gosta ou o quê acha que o “seu” público não vai entender. A grande maioria das adaptações cinematográficas de romances, contos, histórias em quadrinhos, biografias etc, começa a ser desenvolvida com base no original, todavia, na dependência da liberdade poética (nada ética) e principalmente do retorno comercial, acaba virando um arremedo qualquer. O que conta é a popularidade do título e o nome do autor da obra inspiradora..., o resto é detalhe de cartaz. Isso não é novidade para o cinéfilo.

Costumo falar das coincidências de roteiro e de sequências em desenhos animados, muitas vezes ocasionadas pelo tempo de realização, sempre acima dos três anos de produção. Estão chegando aos cinemas duas versões de A Rainha da Neve (The Snow Queen): uma russa (no começo do ano) e outra disneyana (no final). A primeira ganhou o ridículo (re)título de O Reino Gelado e a segunda, até onde se sabe, será Frozen - O Reino do Gelo. Se o Reino Gelado russo vai pouco além de um floco de a neve em sua adaptação do famoso conto, O Reino do Gelo americano (pelo que foi divulgado) só vai derreter neve de isopor. Mera “coincidência” de títulos? Sei! Então, tá!


A Rainha da Neve, de Andersen, para quem não sabe, é um conto dividido em sete “capítulos” e com um punhado de histórias estranhas dentro de cada um. Às vezes parece que Gerda está vivendo as mesmas aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll, já que a garota fala com passarinhos, rios, flores e o que mais aparecer pela frente. Os contos de Andersen, não primam pela leveza, pelo humor..., são mais ao estilo da vida como ela é, vide o trágico e tocante A Pequena Vendedora de Fósforos.

Levemente (mesmo) inspirada na obra original, a trama da versão russa, do conto dinamarquês, gira em torno da saga da bondosa e determinada Gerda, uma garota órfã que sai em busca de seu inocente irmão Kai, levado pelo Vento Polar, a mando da Rainha da Neve. A mesma que, no passado, sequestrou a mãe e o pai da garota, por causa de um espelho que reflete também a alma das pessoas. Enquanto a Rainha é capaz de congelar o coração de qualquer um que ficar entre ela e o espelho, Gerda, movida pelo amor e bondade, aposta na pureza de espírito para fazer amigos e vencer os perigos da jornada.


A ordem dos “capítulos” não foi alterada, mas o seu conteúdo, ganhou outras nuances com o desaparecimento e ou substituição de personagens. Para quem não conhece a Rainha da Neve, de Andersen, a mudança de peculiaridades do conto, principalmente de alguns personagens, pode não fazer diferença, porém congela e manda para o espaço a moral da história. Tem gente que pensa que mensagem de entrelinha só serve para fazer volume! Acredite, cegueira (ôps!) é um substantivo polivamente no contexto anderseniano!

O Reino Gelado (The Snow Queen, Rússia, 2012), roteirizado e dirigido por Maxim Sveshnikov, em parceria com Vladlen Barbe, mantém a estrutura das sete histórias originais, porém fragmentada, dando à narrativa um “ritmo” saltitante. O “corte seco”, entre uma história e outra, passa a impressão de problemas de edição, pelo raso desenvolvimento dos personagens (adulterados). Os realizadores pressupõem (eles adoram pressupor!) que o espectador já conheça os capítulos (e as suas subtramas) e que não precisam ficar detalhando fatos (desimportantes?). O incômodo ruído (para um adulto?) vem, principalmente, da pressa em se contar uma história de, no mínimo, 2h em 80min. Para uma criança (acostumada aos games?), talvez não faça muita diferença, já que, abreviando a falação (?), sobra muito mais tempo para a ação. Enfim, cada povo com o seu jeito de contar e ou recontar uma história.


Se para um espectador-leitor mais exigente, por um lado a animação perde com a desconfortável releitura e mudança de foco (ôps!), por outro ganha com a sua inegável beleza visual, rica em detalhes e com bom 3D estereoscópico. Os cenários, objetos de cena, figurinos, texturas, são fascinantes. As figuras humanas ainda parecem meio duras, meio zonzas, mas, pelo que tenho visto da animação russa e alemã, em CG, melhorou muito. Sinceramente, esse é um detalhe que não chega a incomodar. Há algumas referências cinematográficas em excelentes sequências, demonstrando que os diretores russos estão bem antenados com a arte da animação (de ontem e de hoje!) feita em outros cantos do mundo.


O público alvo de O Reino Gelado é a garotada infantojuvenil, mas pode atingir também algum adulto. Desde que não se espere ver nas telas a história original de Andersen, e sim uma adaptação livre do conto, é uma boa diversão. O humor leve (infantil) e a ação (corre, tromba, cai) são bem ao gosto da criançada. Ah, quem leu o conto vai encontrar no barquinho de papel, dos créditos finais, o começo de tudo.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Crítica: O Som ao Redor



Não sei se o texto que lê é exatamente uma crítica ao O Som ao Redor, simplesmente porque não tenho certeza de ter visto o aclamado e premiado filme brasileiro dirigido por Kleber Mendonça Filho. A primeira vez que li sobre ele foi no Almanakito, num apaixonado comentário da jornalista e escritora Maria do Rosário Caetano, logo após a sua premiação em Gramado. Enquanto o filme acumulava prêmios mundo afora, eu aguardava a sua estreia em Curitiba. Conhecia por alto a sinopse: A vida numa rua de classe-média na zona sul do Recife toma um rumo inesperado após a chegada de uma milícia que oferece a paz de espírito da segurança particular. A presença desses homens traz tranquilidade para alguns, e tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa. Enquanto isso, Bia, casada e mãe de duas crianças, precisa achar uma maneira de lidar com os latidos constantes do cão de seu vizinho. Uma crônica brasileira, uma reflexão sobre história, violência e barulho.

Eu me recuso a ir além das sinopses até mesmo para as Cabines de Imprensa. É um risco que gosto de correr. Talvez por isso, passado tanto tempo, até o seu lançamento comercial, eu tivesse trocado a chegada de uma milícia (da sinopse) por a chegada de uma equipe de televisão. Não sei de onde tirei essa mudança maluca. Enfim, era o máximo que sabia ou pensava saber até assistir a O Som ao Redor, na Sessão do Professor, num sábado de manhã, no Espaço Itaú de Cinema, em Curitiba. O público, que não era grande, estava menor ao final da sessão.


Mal começou a projeção e O Som ao Redor já causou burburinho. A cópia estava praticamente inaudível e com legenda em inglês, tumultuando a atenção de todo mundo. Quanto mais me esforçava para entender a língua pátria, menos entendia. Era engraçado o movimento dos professores avançando os corpos para tentar compreender o que os personagens/atores diziam ou sussurravam na tela. Leitura labial não estava fora de cogitação. Comecei a conjecturar sobre a possibilidade do título se referir ao som ao redor da fala humana. Logo concluí que, se essa fosse a intenção do diretor, não precisaria de legenda em inglês para gringo entender o português brasileiro. Decidi pelo meio a meio, mas sem muito esforço: quando não entendia o diálogo, acompanhava a legenda. Ou deixava ambos de lado e deduzia a narrativa.

Resolvida essa questão “primordial”, começou a minha decepção. Independente das falas em português e ou das legendas em inglês, me vi antecipando todas as sequências. Ao perceber que uma cena cantava a seguinte me dei conta de que O Som ao Redor era previsível do começo ao fim. A impressão era a de estar assistindo a uma aula básica de técnicas cinematográficas em um cursinho de cinema: impacto, emoção, suspense, enquadramento, edição, trilha, clichês etc... Clichê e previsibilidade: a bola que quica aqui, quica ali, quica acolá; o banho de sangue, hoje, vem de ontem e respingará no amanhã; aquele que nada à noite, no mar, não teme o perigo que o (a)guarda na esquina. Elimine o óbvio: a bola que retorna; banho de sangue; parente (mal-encarado) do Paraná, só pra ficar nos mais descarados..., e o que sobra? Redundância! A esperada surpresa saiu pela culatra. 

O Som ao Redor não tem sequer uma história que desperte curiosidade, um personagem cativante ou (ao menos!) interessante. Assiste-se com certo enfado, alheio ao destino das pessoas comuns que povoam a telona com suas pequenas e crônicas (?) rotinas. Um filme que deve se sair melhor em festivais do que em sala comerciais, já acostumadas às intragáveis novas pornochanchadas produzidas por "aquele" canal de TV. Uma produção aquém dos criativos curtas do crítico de cinema e diretor dos excelentes Recife Frio (2009), Eletrodomésticas (2005) e Vinil Verde (2004).


Na tentativa de entender as falhas técnicas e de narrativa, que me saltaram aos olhos, resolvi ler as críticas e comentários já publicadas sobre O Som ao Redor, para ver se encontrava algum respaldo. Nada! Encontrei apenas críticas elogiosas..., e comentários nem tanto, alguns até sugerindo que o filme tivesse legenda em português. Imagino qual seria a reação desses espectadores se vissem a cópia com legenda em inglês. Em conversas com colegas, que o viram em festivais e no cinema, ou não perceberam o problema de som e ou perceberam, mas acreditaram ser intencional. Quanto à previsibilidade da trama, nenhuma palavra. Em conversas informais descobri que muitos espectadores só "gostaram" porque a crítica gostou. Por isso é que não tenho certeza de ter visto o premiadíssimo filme ou uma cópia genérica de O Som ao Redor.

Crítica: Amor



Há muitos anos havia uma coleção de figurinhas com textos curtos e estampas coloridas cujo tema era “amor”. Conheci uma garota que colecionava. A frase mais famosa (ainda hoje) era: Amar é jamais ter de pedir perdão.

Quando garoto, além dos livros, eu adorava gibis e minhas irmãs (mais velhas) não abriam mão das fotonovelas. Eu não achava a menor graça em fotonovelas, mas, por conta dos comentários delas, de vez em quando, pegava alguma para ler escondido e matar a curiosidade sobre “certos assuntos proibidos” para a minha idade. Foi assim que, quase adolescente, li uma frase, numa capa dessas revistas, que me chamou a atenção e que me persegue até hoje quando o assunto é “amor”. Era algo tipo: Você seria capaz de fazer o que Manon fez por amor? Não me lembro se a Manon era a Lescaut, de Abade de Prévost. Não importa! O que retive na memória, qual um trauma, é a palavra “sacrifício por amor”, implícito na frase. Era pré-adolescente e quase nada entendia de amor ou se sacrifícios. Adulto, descobri, de maneira desconfortável, o quanto é difícil significar as palavras amor e sacrifício. E o quanto a semântica faz tudo parecer muito maior quando se é sujeito: (a)mor x mor(te).


O filme Amor (Amour, França, Alemanha, Áustria, 2012) de Michael Haneke, é um álbum completo e com figurinhas premiadas sobre a essência de amar e ser amado. É a frase feita tornando-se frase perfeita na reciprocidade do amor e da dor. Haneke não é o primeiro e nem será o último diretor a falar de AVC ou de Alzheimer (Sarah Poley, em Longe Dela, e Richard Eyre, em Iris), mas talvez seja o mais sincero e o mais radical em sua catarse desesperada de atingir o espectador. Não é um eco fácil de se multiplicar, mas é um verbo fácil de se conjugar, porque tem apenas dois tempos: vida (vegetativa) e  morte (digna) no futuro que é o único pretérito de todos nós.

No prólogo de Amor, um prenúncio de morte. No decurso da trama, um drama presente no cotidiano de muitos espectadores. O admirável e culto casal Anne (Emmanuelle Riva) e George (Jean-Louis Trintignant) partilha profissão (pianistas) e gostos culturais refinados (teatro, literatura, música). Após um AVC que deixou o lado direito de Anne paralisado e afetou a sua memória, irá partilhar novos sentimentos. Aos poucos, na drástica mudança de rotina e de humor, ela, o marido, a família, os amigos, a casa..., serão engolidos pelas brumas vespertinas que despertam fantasmas. Porém, antes que a doença se agrave, Anne pede a George que jamais a interne em uma clínica. A única rima possível no hermético verso que sela o destino de ambos, é o corajoso e perturbador ato de amor de George.


Amor fala de algo raro nos dias de hoje: amor verdadeiro comungado numa vida a dois para um sempre que não acaba. Soa piegas porque em tempos de descarte, um amor fugaz não dura o tempo de um resfriado ou de uma gargalhada. Hoje, evita-se comungar até mesmo os prazeres sexuais. O genial Henfil dizia que o problema do mundo era a falta de relamento. As pessoas não se relam mais, abstraem-se até mesmo nos transportes públicos. Talvez porque confundam o relar com o assédio sexual. Georges e Anne não são apenas marido e mulher, cujo amor foi se fortalecendo com o tempo, são companheiros para todas as horas, com as idiossincrasias pertinentes a qualquer casal. São o tipo de gente que apavora os covardes, porque, fora da ordem estabelecida (por quem?), na saúde e na doença, tomam suas vidas nas mãos..., afinal elas lhes pertencem. Ou não?!

Amor é um filme pungente (mas não é cruel!). A sua narrativa, aparentemente fria, tem o peso do tema focado: a fragilidade humana frente aos acidentes de percurso no envelhecimento. O futuro, para qualquer um, é tão imprevisível quanto a pomba que insiste em invadir a casa tomada pela melancolia do casal. Não há música choramingas para embalar e ampliar o sofrimento e a dor, tão tocantes na soberba interpretação de Trintignant e  Riva. Não há concessões à dor alheia, porque não há como mensurar a dor do outro. Assim é a vida, se lhe parece na mesma situação. A impotência de um parente cuidador de alguma vitima de AVC e ou Alzheimer é indescritível..., e constrangedora para o visitante. Pessoa alguma merece tamanho sofrimento.

Há um movimento, ainda incipiente, a favor do indivíduo e contra o estado e a igreja que se acham fiéis depositários da vida humana (enquanto render impostos/dízimos, é claro) até que o cérebro desligue tudo. Vivemos numa sociedade pautada pela mediocridade religiosa, pela hipocrisia religiosa moldada à vontade de um deus-quem-quer, onde um nobre gesto de amor (comungado na alegria e na tristeza), como o de George, pode soar como blasfêmia.

E você, teria coragem de fazer o que George fez por amor?

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Crítica: As Sessões



Em 1983, após entrevistar homens e mulheres com algum tipo de deficiência e sexualmente ativos, o jornalista e escritor Mark O’Brien escreveu um curioso artigo: On Seeing a Sex Surrogate. A pesquisa mexeu muito com ele, pelo simples fato de, aos 38 anos, ainda ser virgem: ...eu invejava essas pessoas ferozmente. Levei anos para descobrir que o que me separava delas era o medo - medo dos outros, medo de tomar decisões, medo da minha própria sexualidade.... Fruto de uma família tradicional e católico praticante, mesmo não morando mais com os pais, Mark sentia-se mal por suas “ideias, desejos pecaminosos”: Na minha imaginação, eles pareciam ter uma incrível capacidade de saber o que eu estava pensando, e estavam ansiosos para me punir por qualquer conduta ilegal. Em 1996 a cineasta Jessica Yu realizou o premiado curta-metragem, ganhador do Oscar (1997): Breathing Lessons: The Life and Work of Mark O’Brien.

O roteirista e diretor Ben Lewin procurava uma boa história, relacionando sexo e deficiência, quando encontrou na internet o ensaio On Seeing a Sex Surrogate (link no título - em inglês), do ativista Mark O’Brien que, assim como ele, contraiu poliomielite ao seis anos. Se a pólio fez com que Ben use muletas pelo resto da vida, obrigou Mark a viver em um “pulmão de ferro” e, se fora dele, por apenas três a quatro horas. No entanto, isso não foi empecilho para que O’Brien, com sensibilidade em apenas um músculo do pescoço, um da mandíbula e um músculo de seu pé direito, se formasse em Literatura Inglesa e Jornalismo e se tornasse um dos fundadores da Lemonade Factory, editora que publica literatura criada por pessoas com deficiência.


O artigo sobre a sexualidade e a desconcertante poesia de Mark O’Brien serviu de inspiração para que  Ben Lewin fizesse um dos mais interessantes filmes do “gênero superação”. Um filme que chega com o mesmo brilhantismo do aclamado Os Intocáveis (de Eric Toledano e Olivier Nakache). Pela delicadeza e ternura com que Lewin fala de um tema tabu (sexo) para a maioria das pessoas que imagina o deficiente como um ser assexuado e isento de qualquer tipo de desejo e ou paixão, é difícil classificar As Sessões. O tema sugere um drama(lhão) tradicional, porém o diretor e roteirista opta por uma narrativa leve, graciosa. Não necessariamente uma comédia, mas uma simpática crônica (é isso!) bem humorada, sobre um paraplégico, Mark O’Brien (John Hawkes, fantástico) que, aos 38 anos, decide que é hora de perder a virgindade e busca os conselhos (e a possível camaradagem) de um padre, Brendan (William H. Macy, excelente) e a ajuda de uma especialista em exercícios de consciência corporal, a terapeuta sexual, Cheryl (Helen Hunt, admiravelmente corajosa).

As Sessões (The Sessions, EUA, 2012) é uma das mais completas traduções do amor com sexo e poesia já vistas no cinema. Despojado, deserotizado, e ao mesmo tempo sensual, com uma naturalidade tocante nos diálogos e na exposição e exploração do desejo sexual, o filme arrebata e emociona o espectador.  É uma obra vigorosa, sem uma gota de pieguice, sobre os desafios e a busca (sem culpa!) pelos prazeres da vida, a partir do olhar de uma pessoa (real) com algumas limitações físicas. Não um filme “coitadinho” sobre um personagem “coitadinho”, para arrancar lágrimas gratuitas (as que arranca são verdadeiras!) do público “coitadinho”. O preconceituoso olhar alheio (social ou religioso) é que aliena o outro.


As Sessões não é uma cinebiografia de Mark O’Brien. O título refere-se às sessões de terapia a que ele se propõe para “conhecer biblicamente” uma mulher ou o sexo ou os prazeres da carne. O embate entre o cidadão (e os seus desejos primordiais) e o clérigo (e seus dogmas milenares) é saudável e divertido, mas o que deve despertar maior interesse é a educativa explanação (é melhor que o espectador ouça, veja e conclua por conta própria durante as sessões) sobre a diferença básica entre uma terapeuta sexual e uma prostituta. O coloquialismo que perpassa toda a trama, enriquecendo as belas performances de protagonistas e coadjuvantes, alcança em cheio a fotografia de Geoffrey Simpson.

Ben Lewit trabalha com um assunto difícil e sem nunca tangenciar o clichê choramingas do paraplégico amargurado relegado à própria sorte (ironizado no poema Lifestyles of the Blind and Paralyzed). Ele não busca chão no abismo ou sequer nuvem de lágrimas, porque não almeja a piedade do espectador. O seu interesse é dar luz às considerações de um paraplégico sobre si mesmo e que, em seus anseios sexuais, se distingue de um não-paraplégico por mero detalhe físico. Em um trecho de seu artigo, O’Brien diz: Depois que saiu do colchão, ela tirou um grande espelho da sacola. Segurando-o, para que eu pudesse me ver, Cheryl perguntou o que eu achava do homem no espelho. Eu disse que estava surpreso, que eu parecia tão normal, que eu não era a figura horrivelmente torcida e cadavérica que sempre me imaginei ser. Eu não tinha visto os meus órgãos genitais desde que eu tinha seis anos de idade. Foi quando me ocorreu a poliomielite, encolhendo-me abaixo do meu diafragma de tal forma que a visão de minha parte inferior do corpo tinha sido bloqueada por meu peito. Desde então, essa parte de mim parecia irreal.


Na improvável hipótese de não se sentir tocado pela dinâmica narrativa e tampouco arrepiado ao ouvir, em duas sequências, o poema Love Poem for No One in Particular, escrito por O’Brien em 1987: Let me touch you with my words./ For my hands lie limp as empty/ gloves./ Let my words stroke your hair,/ Slide down your back and tickle/ your belly./ For my hands, light and free-flying/ as bricks,/ Ignore my wishes and stubbornly/ refuse to carry out my quietest/ desires./ Let my words enter your mind,/ bearing torches./ Admit them willingly into  your/ being/ So they may caress you gently/ within. (não sei se a versificação está correta, encontrei várias publicações, esta é a do roteiro)..., caro espectador, é melhor rever seus conceitos. Quem quiser saber mais sobre Mark, sugiro este belo artigo (em inglês) de Lorenzo W. Milan: Mark O'Brien: Lifestyles of the blind and paralyzed, postado no site Salon (link no título).

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Crítica: Meu Namorado é um Zumbi



Quando li a resenha do livro Warm Bodies, de Isaac Marion, traduzido, por aqui, como Sangue Quente, fiquei fascinado com a originalidade da ideia. Soube da versão cinematográfica e pensei, na mão certa vai dar um belo espetáculo. Não sei do livro, mas o filme, com o abominável título Meu Namorado é um Zumbi (no caso de Zumbi, cabe uma preposição) é um simpático drama (leve) muito romântico e com bom humor (SEM ESCATALOGIA!). Ainda bem! Para quê mais um filme demente de zumbi igual todos os outros filmes de zumbis dementes comedores de gente demente?

Meu Namorado é um Zumbi (Warm Bodies, EUA, 2013), com roteiro e direção do intimista Jonathan Levine, conta a estranha história de amor quase impossível, entre o morto-vivo R (Nicholas Hoult) e a viva-bela Julie (Teresa Palmer), que começou casualmente quando ambos se caçavam mortalmente. R e sua turma precisavam encontrar humanos para saciar a sua fome e Julie e seus amigos (em busca de suprimentos médicos) caçavam zumbis que cruzassem o seu caminho, para evitar que mais vivos-vivos fossem mortos e ou transformados em mortos-vivos (ou vivos-mais-ou-menos-mortos ou mortos-mais-ou-menos-vivos). R se apaixonou por Julie à primeira vista. Quanto à Julie, ela não tinha muita certeza dos seus sentimentos até que...


Narrado na primeira pessoa, pelo melancólico R, que sequer lembra o seu nome ou o que o fez virar um zumbi e muito menos o que o faz tão diferente dos seus amigos de gênero, o drama favorece diversas leituras sobre o universo adolescente. A metáfora pode estar na alienação juvenil, na busca de identidade num mundo tão igual, povoado por diferentes e diferenças sociais e raciais. A alegoria da fome pode ir além do gesto antropofágico, do ato de se apossar e regurgitar a memória alheia em detrimento da pessoa ressignificada (ou seria resignada?). O prazer visual (e intelectual) pode estar apenas na leitura de uma boa (ou velha) história romântica bem contada, com seus curiosos diálogos subliminares.

O ser e o não-ser habitam os corpos da bela Julie e da fera R que ignoram as regras naturais do amor e ao negá-las se transformam e também aqueles ao seu redor. Corpos quentes (warm bodies) dimensionam o desejo além da carne e da preservação da espécie. Um corpo quente é o passaporte para se resgatar do limbo a dignidade obstruída pela indiferença. Confesso que me espantei ter lido isso tudo em Meu Namorado é um Zumbi. Não acredito ser uma leitura fácil para aquele público que entra na sala já com uma ideia formada a respeito do que quer saborear da trama. A decepção com a ausência de carnificina ou do tipo sanguinolento padrão de zumbi vai ser proporcional à expectativa. O ritmo e a condução (ôps!) dos zumbis é em outra pista. Uma trilha bem escolhida evita-se muitos sustos!


O que encanta neste filme, com cara de cinema independente, é a despretensão, a simplicidade e tranquilidade em contar uma história mais apropriada à linguagem fantástica do que de terror (ou horror). Não há exageros performáticos e ou no roteiro e direção, cujo título se justifica (com muita nostalgia e poesia) no epílogo. Tudo é preciso e econômico (até nas escorregadas), pontuado por rocks e baladas saudosistas. O desenho de produção é ótimo (excetuando os esqueléticos) e também perturbador, com as sequências no aeroporto. Um bom programa para quem gosta de variar o cardápio.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crítica: As Aventuras de Tadeo



As férias estão terminando, mas ainda há um tempinho para a garotada apreciar a estreia de mais um desenho animado em 3D. Quem chega querendo aproveitar umas horinhas do verão tropical (com invernicos ocasionais) sul-americano é a ensolarada animação espanhola: As Aventuras de Tadeo (que no Brasil perdeu (?) o sobrenome Jones). A produção mira no público infantojuvenil (6 aos 12 anos), e, com um pouco de sorte, deve atingir os fãs dos caçadores de relíquias Indiana Jones (do Spielberg) e Lara Croft (do Toby Gard).

As Aventuras de Tadeo (Las aventuras de Tadeo Jones, Espanha, 2012), dirigido por Henrique Gato, é uma surpresa bacana num cenário dominado por produções norte-americanas. Criado por Gato, como uma paródia a Indiana Jones, o personagem Tadeo apareceu primeiramente em dois curtas-metragens do diretor: Tadeo Jones (2005), indicado ao Oscar de melhor curta-metragem, e Tadeo Jones e o Porão da Desgraça (2007), ambos ganhadores de inúmeros prêmios, entre eles o respeitadíssimo Goya.


Pensado para o mercado internacional (Thaddeus Jones Adventures) a animação, com roteiro simplório de Verónica Fernández, Jordi Gasull, Neil Landau, Ignacio del Moral, fica entre a paródia e a homenagem a Indiana Jones  e a Lara Croft. A história gira em torno de Tadeo, um sujeito sonhador e muito curioso que, quando garoto, queria ser arqueólogo, mas acabou mero pedreiro..., porém, sem deixar de sonhar e especular sobre “relíquias” que encontra ocasionalmente nos terrenos das obras.  Um dia, por conta de um incidente, ele e seu inseparável cachorro Freddy, vão parar no Peru, onde conhecem Jeff, um mascate de quinquilharias, Sarah, filha do professor Lavrov, que está à procura da cidade perdida de Paititi, e Belzoni, um papagaio mundo. Para Tadeo, que sempre sonhou em viver grandes aventuras em busca de tesouros perdidos, esta promete ser a sua grande chance..., isto é, desde que ele e seus amigos não caiam nas mãos dos piratas de relíquia que querem algo que acreditam estar em seu poder...

Alguns críticos espanhóis não gostaram (e com razão?) da nacionalidade norte-americana do personagem protagonista, Tadeo. Bem, cá pra nós, a Espanha tem mais vivência em invasão de antigos territórios e extermínio de ricas culturas locais (Incas, Maias, Astecas) do que os norte-americanos. Enfim, nessa narrativa a história se inverte, mesmo sem formação (profissional) em arqueologia, Tadeo fará o que puder para ajudar seus novos amigos a proteger antigos tesouros peruanos das mãos dos mercadores internacionais de obras de arte.


A pouca originalidade do roteiro (livremente inspirado nas três deliciosas aventuras de Indiana) e no desenvolvimento de alguns personagens, como o insuportável e caricato Jeff, é compensada pela eficiência técnica, incluindo o bom uso de 3D.  Acredito que pontos em comum entre o papagaio mudo (Belzoni) e o macaco mudo (Sr. Bobo) de Piratas Pirados é mera coincidência. As Aventuras de Tadeo não chega a ser um desenho hilário, para um adulto (acompanhante), mas é bem colorido e o clima pastelão nas perseguições de carro e de trem, deve prender a atenção e divertir a garotada. A animação tem algumas sequências muito bem resolvidas e o bonito prólogo é uma das aberturas mais emocionantes que já vi no mundo da animação.

Assim como quem quer nada, mas querendo o mundo, a Espanha vem chegando “distraída” com belíssimas produções para o público adulto, como a indicada ao Oscar: Chico e Rita, de Fernando Trueba e Javier Mariscal, e ou a grande sensação do AnimaMundi: Rugas, de Ignácio Ferreras. Já para a garotada o destaque fica com: Planeta 51 (que sou fã!), de Jorge Blanco, Javier Abad e Marcos Martinez, e o razoável: O Lince Perdido, de Manuel Sicilia e Raúl García.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Crítica: Os Miseráveis



Na França, um homem roubou um pão para dar de comer a um sobrinho faminto. Foi condenado a 19 anos de prisão. Em liberdade condicional, sem conseguir qualquer tipo de emprego, decidiu encontrar um meio de sobreviver por conta própria. A lei é implacável e irá caça-lo aonde quer que vá. Esta é síntese da síntese do épico romance Os Miseráveis, do genial escritor humanista Victor Hugo (1802 - 1885), publicado em 1862, após 30 anos de maturação. Também poderia ser mera manchete de jornais impressos e ou televisivos.

150 anos depois a ação continua se repetindo mundo afora, seja por um pedaço de pão, um pacote de leite, um pote de manteiga, uma fruta passada..., para saciar a fome. Não muda o mundo abastado. Não muda a sina dos miseráveis. No campo dos governantes, miseráveis culturais impunes, a bola de Victor Hugo será sempre chutada para escanteio. Gente inescrupulosa não lê Os Miseráveis. Não vê Os Miseráveis. Não assiste aos seus miseráveis. Na hora oportuna, recorrem às cebolas baratas.


Os Miseráveis (Les Misérables, Reino Unido, 2012), belo musical dirigido por Tom Hooper (O Discurso do Rei) é um filme inquietante para os amantes do gênero, com ou sem consciência social. Adaptado do megassucesso musical britânico, concebido a partir da obra conceitual dos compositores franceses Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, ele apresenta algumas novidades. Hooper aboliu o uso de playback, exigindo que os cantores cantassem ao vivo durante as filmagens. Ele queria veracidade nos diálogos ou monólogos musicais, e conseguiu. As performances são expressiva, tocantes, e crescem em emoção a cada número musical. O elenco está soberbo. O filme não tem número de dança. É difícil até de se imaginar sequências dançantes com um conteúdo tão forte em um cenário tão duro. Como o norte-americano não gosta do inglês da Inglaterra (Austrália etc), não entende o sotaque, pode ser que um dia Hollywood resolva refilmar..., aí tudo é possível!


Baseado no roteiro de William Nicholson, o drama musical, em três atos (1815 - Toulon/Digne; 1823 - Montreuil-sur-Mer; 1832 - Paris), acompanha a saga de Jean Valjean (Hugh Jackman, excelente), condenado a 19 anos de prisão por roubar um pão, a partir da sua liberdade condicional no ano 1815, em Toulon.  Para Valjean, mesmo livre dos grilhões, o inferno da opressão continua: “Olha para baixo, olha para baixo, você sempre será um escravo, olha para baixo, olha para baixo, você está de pé em seu túmulo”. Constantemente vigiado e sem trabalho ele acaba tomando uma decisão drástica e passa a ter o irascível Inspetor Javert (Russell Crowe) na sua cola.

Sempre a um passo a frente da polícia, Valjean reaparece em 1823 e conhece, em situação desesperadora, Fantine (Anne Hathaway) e Cosette (Isabelle Allen), a filha dela. O decisivo encontro entre Javert e Valjean se dará em Paris, no ano de 1832, em plena revolta, arquitetada por jovens progressistas como Marius (Eddie Redmayne) que, em meio a luta por liberdade, se vê entre duas paixões avassaladoras: Cosette (Amanda Seyfried) e Eponine (Samantha Barks, linda e canta muito!), filha do tresloucado casal de vigaristas: Monsieur e Madame Thénardier  (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter), responsável pelo alívio cômico da trama.


Os Miseráveis não é uma obra tão densa quanto o livro, afinal é a versão musical compacta de um romance escrito em cinco volumes, contudo, conservou toda a sua essência. A intensidade de Victor Hugo se faz sentir em cada letra ferina, em cada lamento, na expressão miserável daqueles que desfilam pela tela. Na projeção IMAX, os espectadores vão se sentir no centro dos acontecimentos, mergulhados até o pescoço nos esgotos, partilhando dramas e tragédias. Em algumas cenas vão querer esconder, doces, pipocas e refrigerantes, não por receio de serem roubados pelos personagens, mas por constrangimento. Ouvir Fantine/Hathaway, cantando a visceral I Dreamed a Dream e se descompondo física e mentalmente, faz qualquer um querem abrir um buraco e desaparecer. Todavia, o soco no estômago incomoda, mas não é fatal. Sabe-se representação com final anunciado. Na miséria (encenada ou real), além do shopping ou da sua porta, não há dignidade. Discursos revolucionários ou a lógica de um pensamento do grande romancista e ativista francês Victor Hugo: Se apenas um homem detém o conhecimento: monarquia; Se apenas um grupo de homens responde pelo conhecimento: aristocracia; Se todos os homens têm acesso ao conhecimento: democracia. ..., continuam ecoando no vazio.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...