segunda-feira, 2 de abril de 2012

Crítica: Xingu



Xingu é um filme que precisava ser feito. É uma história que precisava ser bem contada, antes que algum estrangeiro norte-americano lançasse mão e botasse índio bilíngue falando espanhol e inglês americano, ou coisa pior.

Eu me lembro de uma frase que pautava o Projeto Rondon e que chamou a minha atenção: “matar um índio, jamais, se preciso for, morrer por ele”, uma “tradução” da frase original: “morrer, se preciso for, matar, nunca”, do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865 - 1958). Era adolescente, não tinha idade e nem formação para participar e morria de inveja dos novos “bandeirantes”. Nessa época havia (também) muita notícia desencontrada sobre o trabalho de socialização que Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas desenvolviam junto às comunidades indígenas. Com o tempo as informações sobre a árdua lida dos irmãos acabaram encontrando foco. As ações que colocaram em prática, para garantir (com alguma dignidade) a sobrevivência dos povos indígenas, ainda hoje causam rebuliço e frio na espinha de governantes, agropolíticos, agroempressários, que continuam defendendo uma política (de ocasião) extrativista ampla, geral e irrestrita.


Assim como Rondon, os irmãos Villas Bôas procuraram conhecer, registrar e preservar a cultura indígena. Em 1958, quando da morte de Rondon, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922 – 1997) fez um belo discurso em sua homenagem e, entre outros princípios, citou este: “O segundo princípio de RONDON é o do respeito às tribos indígenas como povos independentes que, apesar de sua rusticidade e por motivo dela mesma, têm o direito de ser eles próprios, de viver suas vidas, de professar suas crenças e de evoluir, segundo o ritmo de que sejam capazes, sem estarem sujeitos a compulsões de qualquer ordem e em nome de quaisquer princípios.” Claudio Villas Bôas também apostava na cultura: Se achamos que nosso objetivo aqui, na nossa rápida passagem pela terra é acumular riquezas, então não temos nada a aprender com os índios. Mas, se acreditamos que o ideal é o equilíbrio do homem dentro de sua família e dentro de sua comunidade, então os índios têm lições extraordinárias para nos dar". Na trilha aberta por um segue a passos largos o outro.


Os heroicos Orlando (1914 - 2001), Claúdio (1916 - 1998) e Leonardo Villas Bôas (1918 - 1961) tinham consciência dos seus limites, estrangeiros que eram em terras nacionais indígenas. Mas sabiam da importância e da necessidade de cruzarem pacificamente a fronteira sociocultural e evitar (o impossível!) que outros homens (mal intencionados) chegassem antes. Assim, entre uma batalha e outra, abriram 1.500 quilômetros de picadas, percorreram 1.000 quilômetros de rios, abriram 19 campos de pouso, desbravaram 43 vilas e cidades, contataram 14 tribos e enfrentaram mais de 200 casos de malária. O preço foi alto, mas valeu a pena entrar num embate (ainda longe do fim) que garantiu direitos mínimos aos povos da floresta, até então considerados “ninguém”.


Xingu (Brasil, 2011), de Cao Hamburger, é um pertinente registro da histórica saga dos irmãos Orlando (Felipe Camargo), o responsável pelas articulações entre as desiludidas etnias e o titubeante poder oficial, Claúdio (João Miguel), o homem de campo inconformado com a situação dos silvícolas, sertanista extremamente consciente das consequências de cada gesto de “benevolência” dos brancos (inclusive dos seus): “Nós somos o antídoto e o veneno, e Leonardo Villas Bôas (Caio Blat), o impulsivo e romântico desbravador que via a Expedição Roncador-Xingu como algo importante, porém, cansativo. A narrativa abrange o período que vai da Expedição Roncador-Xingu (1943) à criação da reserva indígena Parque Nacional do Xingu (1961). O fascinante drama, que lembra um documentário ao vivo, tamanha a entrega do elenco de atores (destaque para a excelência de José Miguel) e não-atores (os indígenas) ao projeto cinematográfico, é inspirado em fatos reais. Com roteiro do próprio Hamburger, em colaboração com Elena Soarez e Anna Muylaert, o épico traz à tona um Brasil de ontem, mas que ainda hoje insiste em tropeçar nos próprios erros.  


Cao é um cineasta que se destaca pela elegância na direção. Um dos poucos diretores que consegue dizer muito com o mínimo, sem jamais subestimar a inteligência do espectador e sem abusar de clichês. Xingu é a sua versão (compacta) de tudo que ouviu e leu (e filtrou) sobre os Villas Bôas, das desavenças familiares aos intensos conflitos com as tribos e posseiros, sem negligenciar as conturbadas negociações governamentais para a implantação do “território indígena”. É um filme que instrui, emociona e também constrange ao falar de direitos (reais), conquistas e barganhas. Em sua singularidade, não esgota o assunto sobre a posse da terra e das almas evangelizadas (e perdidas) desde os primeiros invasores europeus. No entanto, ao retratar com eficiência o trabalho dos irmãos Villas Bôas espera-se (ao menos) que desperte interesse (estudantil) e até abra discussão (comunitária) sobre um tema tão caro à maioria dos brasileiros.

Xingu foi rodado em belíssimas locações. A paisagem mítica e selvagem (cenário perfeito para a trama) garante o realismo na excepcional fotografia de Adriano Goldman, emoldurando uma história que, além da reflexão, convida o espectador urbano a fazer uma viagem sensorial. Um filme imperdível!

Fotos: Beatriz Lefèvre

2 comentários:

  1. Legal, Joba!
    Me convenceu a ver o filme... Aproveito pra recomendar outro, que não é fácil de achar (mas vale a pena tentar), sobre o conflito entre o latifúndio no MS, um filme ítalo-brasileiro (do italiano Marco Bechis). Excelente. Aqui tem o trailer:
    http://www.youtube.com/watch?v=sYGvaY2_15k
    Grande abraço!

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    Respostas
    1. Olá, Ravel.
      Espero que Xingu lhe cause a mesma
      ou melhor) impressão que a mim.

      Vou pesquisar sobre o filme que falou e lhe retorno.

      Abração.

      T+

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